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Thonny Hawany[1]
Resumo: O presente artigo trata das relações
do discurso e suas implicações ideológicas na edificação do poder socialmente
constituído; de igual modo, apresenta a plurivalência e a plurilateralidade
discursivas como bases primeiras do desencadeamento de discussões dialógicas e
dialéticas aplicadas ao discurso antitético. O texto está fundamentado por mais
de uma teoria, privilegiando, naturalmente, a dialética bakhtiniana na qual se
ampara para evidenciar as contradições, os ditos e os não-ditos do discurso,
que são benéficos ao homem quando utilizados para dirimir conflitos, mas
infinitamente venéficos quando usados na manipulação de interesses tiranos em
detrimento do melhoramento social, político, econômico e cultural do homem. Palavras-chave: Bakhtin, discurso, dialogismo,
dialética, antítese.
Abstract: The present article deals with
the relations of the speech and its ideological implications in the
construction of the power socially consisting; equally, it presents the
discursive plurivalency and the plurilaterality as first bases of the
enchainment of dialogical discussions and dialectics applied to the antithetic
speech. The whole text is based on more than a theory, privileging, of course,
the bakhtinian dialectic under which if it supports to evidence the
contradictions, said and the non-said ones of the speech, they are beneficial
to the man, when used to nullify conflicts, but infinitely poisonous, when used
in the manipulation of tyrannous interests in detriment to the social
improvement, politician, economic and cultural of the man. Key-words: Bakhtin,
discourse, dialogism, dialectics, antithesis.
1.
Um diálogo de exposição dos princípios gerais
O
presente artigo não deverá constituir palco de discussão profunda sobre os
elementos da teoria ou de reflexão imanente acerca da filosofia da linguagem,
mas sim procurará apresentar dados que viabilizem a compreensão sobre o fazer
instrumental da linguagem na formação das ideologias e consequentemente na
sustentação do poder.
Para
avançarmos na discussão do assunto posto em evidência, necessário se faz uma
breve explanação sobre cada um dos pontos que envolvem a tricotomia: linguagem,
ideologia e poder. O assunto é por demais amplo, mas a nossa proposta de
trabalho deverá condensá-lo ao máximo, tendo em vista a natureza concisa da
atividade que nos predispusemos a apresentar para análise e compreensão
imediata daqueles que, ainda incipientes, perscrutam a teoria em busca de
respostas que elucidam a importância da linguagem, da ideologia e do poder nas
relações entre indivíduo e sociedade.
Se
de um lado a linguagem é a representação máxima do pensamento por meio de signos
que permitem a comunicação e a interação entre indivíduos, de outro a
ideologia, como ciência das ideias, é o elemento revérbero dos signos linguísticos
impregnados de significações ideológicas que redundam na terceira fração de
nossa tricotomia, o poder – aqui entendido como produto da “manipulação”
eficiente dos signos ideológicos.
Assim
sendo, com o intuito de elucidar a cumplicidade entre linguagem, ideologia e
poder como elementos deflagradores de transformação e de sustentação da
convivência social e de aclarar as relações dialógicas aplicadas ao discurso
antitético, tomaremos mais adiante como exemplo alguns textos e fragmentos
emprestados pela história e pela arte.
2.
Um diálogo teórico
A
partir deste ponto, deverão ser elucidadas algumas questões que consideramos
cruciais para o desenvolvimento da presente proposta. Buscaremos na teoria Bakhtiniana,
especialmente no bojo da obra Marxismo e filosofia da linguagem[2], e
em outros teóricos do mesmo nível o respaldo necessário para as afirmações e comparações
que faremos miudamente em relação ao objeto apresentado.
A
Análise do Discurso (AD)[3]
será, neste estudo, não o objeto ou parte dele, mas em alguns pontos o
instrumento mensurador das relações intrínsecas e extrínsecas existentes entre
a linguagem, a ideologia e o poder. Em se tratando de estudo da linguagem,
deveremos centrar nossos esforços rumo à compreensão daquela que grita
interesses coletivos e vai além das conveniências egoístas, servindo como ponto
de partida para a formação da consciência coletiva[4],
quando se impregna de conteúdo ideológico, conforme Bakhtin (2002).
De igual modo, não
trataremos de ideologias individualistas nem de poderes que não sejam emanados
do discurso político e literário com função social. Serão, portanto, uma bandeira
deste trabalho as relações que a linguagem exerce na implementação e na
transformação de velhas ideologia em novas, com o intuito de desencadear visões
renovadoras em relação ao exercício do poder. Não deixaremos de apresentar
também, para confronto, exemplos de velhos poderes que tentam ou tentaram
renascer maquiados de jovens posturas sócio-políticas.
A linguagem, como instrumento
valioso, exerce forte participação no fenômeno de implementação de novas
ideologias e gera, desta maneira, a consciência coletiva, que será o ponto de
articulação entre o povo e o poder. Conforme Hjelmslev (1975, p. 1),
a linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana.
Quando
Hjelmslev (1975, p. 2) disse que “a linguagem, como um sistema de signos, devia
fornecer a chave do sistema conceitual e a da natureza psíquica do homem”,
antecipava o que hoje já compreendemos com melhor clareza, graças às novas
discussões fundamentadas na Análise do Discurso, com ênfase para o que, dentro
do contexto semântico, afirma Frege (1978, p. 65): “[...] A representação é subjetiva: a representação de um homem não é a
mesma de outro”.
Se
a linguagem é um sistema de signos, ela é naturalmente ideológica, pois
conforme Bakhtin (2002, p. 32) “tudo
que é ideológico possui um significado e remete a algo fora de si mesmo [...],
tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”.
Portanto, torna-se fácil perceber que a linguagem constitui-se importante
matéria-prima na construção do tecido ideológico. Sem linguagem é impossível
conceber a ideologia.
Todas
as vezes que a linguagem como instrumento de ideologia não convergiu para o
intento ideológico comum à maioria dos indivíduos de um dado meio social, os
objetivos e as metas propostos pelos audaciosos projetos rumo ao poder não
foram, geralmente, alcançados, não perduraram por muito tempo ou não saíram dos
planos iniciais. Em relação a isso, a História reserva-nos modelos de discursos
e atitudes que não vingaram, a exemplo da ditadura militar no Brasil, que
nasceu debilitada por não comportar a linguagem como instrumento de realização
ideológica e comum. Neste caso, o signo se mostrou ineficiente frente ao seu
objetivo inicial de reproduzir uma certa consciência coletiva.
Toda linguagem passa pelo
crivo da observação social, e somente o discurso afinado consegue ultrapassar
as barreiras do tempo, amealhar ideologias, formar a consciência coletiva e se
solidificar como poder.
Sobre
este critério de apreciação rigorosa da linguagem, fica evidente em Bakhtin
(2002, p. 32) quando ele diz que “todo signo está sujeito aos critérios de avaliação
ideológica”, e que é notório percebermos o contorno bem definido daquele
discurso cujo “domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos”. Ainda
para Bakhtin (2002) o signo não se aparta do ideológico: onde há ideologia há
signo e vice-versa.
Em síntese, o signo
sistematizado reflete a ideologia de um grupo socialmente organizado que, por
sua vez, refrata essa mesma ideologia a outros grupos também refratores,
ampliando, deste modo, o raio de ação do discurso, tornando-o instrumento de
poder ideologicamente constituído. Ainda sobre o assunto, é prudente dizer que
o signo ideológico, ao ser refletido, pode encontrar absorvência passiva e se
firmar como discurso unilateral, a exemplo daqueles que alimentaram e alimentam
rígidas ditaduras espalhadas pelo mundo; ou, de outro modo, pode embater-se com
discursos sustentados por signos igualmente fortalecidos e que, por sua
natureza consciente, são capazes de contra-argumentar, criando assim
sobremaneira um discurso dialético.
3.
Um diálogo de contradições: alguns recortes históricos
Para
falar das relações dialéticas entre os diversos discursos, buscaremos, ao longo
da história, recortes que ilustram acontecimentos nascidos, quase sempre, com o
intuito de contradizer outros já “consolidados como verdades indissolúveis”. Em
algumas épocas, ideologias antitéticas chegaram a coexistir como verdades
paralelas, causando, deste modo, o que podemos chamar, em tese, de angústia
social. Para melhor explicitar tais relações, doravante passaremos a discutir alguns
fatos que se contrapuseram ao longo dos tempos.
No período compreendido
entre os séculos XIV e XVI, o Renascimento Cultural representou uma situação
inteiramente distinta daquela à qual ele se opunha, o período medieval.
Conforme Vicentino (1999), o discurso renascentista representava a ruptura com
a Idade das Trevas, fazia emergir da
escuridão medieval o despertar de ideias gloriosas nas letras, nas artes e nas
ciências em geral.
O Renascimento é talvez o
maior exemplo de antítese histórica, porque é a partir daí que são
desencadeados outros fenômenos ideologicamente contraditórios, a exemplo da
contraposição teocentrismo versus antropocentrismo. Enquanto o medievo
sustentava a figura de Deus como o centro da razão, o homem renascentista se
achava o próprio Deus e passava a ser ele mesmo o centro de todas as coisas.
Ainda sobre as
contradições históricas, podemos mencionar a Reforma e a Contra-Reforma,
desencadeadas com o surgimento de novas religiões cristãs que não concordavam
com certos dogmas e acabaram por abalar a hegemonia teopolítica da Igreja
Católica. No século XVIII, a Revolução Francesa levou Napoleão Bonaparte,
“representante legítimo do povo”, ao poder em
detrimento de Luiz XVI, ícone da nobreza francesa. No mesmo século, o
Iluminismo caracterizado pela confiança no progresso e pelo incentivo à
liberdade de pensamento, aflorou graças ao forte discurso de desafio às
debilidades históricas, representadas pelos ideais tradicionais e totalitários.
Os
recortes históricos acima apresentados servem para nos mostrar que todo
discurso é, além de contraditório, um veículo que sustenta ideologias
indubitavelmente contraditórias. O discurso deve, portanto, ser compreendido
sempre dentro do contexto histórico-social em que é proferido; num dado momento,
pode ser absolutamente inovador e atual e, em outro, ser arcaico e
ultrapassado, fato que o torna forte candidato ao ranking daqueles que precisam
ser renovados. Se todo discurso é produzido por
intermédio da manipulação perfeita de signos ideológicos e não de palavras em
estado de dicionário, é importante perceber uma outra face do discurso que é
servir, quase sempre, como instrumento em favor das classes dominantes.
Conforme Bakhtin (2002, p. 47), “a
classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e
acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos
índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”. Esta questão da monovalência do discurso pode
ter representado valioso mecanismo de afloramento, mas de sustentação frágil
das ideologias de ditadores como Hitler, Mussolini e Stalin ao instaurarem seus
regimes totalitários.
Ainda sobre essa questão,
é possível também perceber que, quando a membrana que mascara o discurso se
rompe, mostrando a fragilidade e a verdadeira intenção ideológica, quase sempre
ardilosa do poder, ele se transforma, disfarçando-se nos poderes remunerativo,
normativo e principalmente coercitivo, a exemplo do regime cubano, que há
décadas perdeu a sua vitalidade discursiva e se sustenta pela coerção. Para
Gramsci, (1968, p. 113), todo poder que quer se sustentar por tempo
considerável deve observar que:
é preciso uma revolução cotidiana. A política tem que ser feita na sociedade, deve referir-se a todos os espaços do poder disponíveis. A luta política não pode limitar-se apenas a uma de pura força física ou de puro poder econômico. O Estado é força, coerção e dominação, mas a sociedade é o espaço do consenso, é o lugar onde os homens conflitam seus interesses através da persuasão. Não basta força, portanto. É preciso conquistar a consciência das pessoas. Quem quiser disputar o poder nessa sociedade [...] moderna, complexa, tem que ganhar a batalha das ideias. (Grifo nosso)
Por último, vale ressaltar
que o aspecto tênue do discurso é uma característica significativa da
monovalência e da unilateralidade que o sustenta. Para os movimentos
ideológicos que querem “ganhar a batalha das ideias”, o ideal é a plurivalência
e a plurilateralidade discursivas, é o consenso. E sobre isso a história
pós-moderna tem nos reservado muitos exemplos, que serão adiante tratados.
4.
Um diálogo de plurivalências e plurilateralidades discursivas
Falar
de plurivalência e de plurilateralidade discursivas é, a priori, um desafio, tendo em vista ser ambas de natureza bastante
complexa. O discurso plurivalente é aquele carregado de vários sentidos
enquanto que o discurso plurilateral é o resultado da convergência de discursos
menores ecoados de diversos segmentos da sociedade. Todo discurso plurilateral
é, por natureza, plurivalente, tendo em vista a sua natureza social. Já o
discurso plurivalente pode não ser necessariamente plurilateral, uma vez que
pode emanar de um único lado, mesmo contendo em si muitos valores e
significados. Todo discurso unilateral, em tese, pode ser plurivalente, mas a
recíproca não é verdadeira, isto porque o discurso plurilateral não pode ser
monovalente, haja vista nascer da diversidade de ideias e não da
individualidade delas. O discurso provindo da consciência individual, quando se
une aos discursos de outras consciências também individuais, ganha elementos
que o torna diferente de sua base primária.
O
ideal é que a plurivalência e a plurilateralidade trabalhassem aliadas na
implementação e sustentação de um poder capaz de se firmar pela força do
discurso dialogado, pautado, a priori,
pela discussão das ideias e, a posteriori,
pela convergência dos ideais coletivos. A escolha do modelo discursivo nem
sempre é atribuição daquele ou daqueles que tenciona(m) implementar mudanças e
fortalecer poderes; a própria natureza do fenômeno aliada a fatores de caráter
contextual, involuntariamente, responsabiliza-se, num dado momento, pela
escolha do dialogismo como técnica de correlação de ideias na formação de um
todo ideológico, ou, em outro momento, pela dialética como método em que as
ideologias contraditórias declaram contenda e digladiam-se com a finalidade de
se complementarem para dar origem a uma terceira ideologia, em que prevalece a
soma parcial das anteriores, geralmente predominando a que possuir maior
substância coercitiva sustentada pelo discurso. Segundo Bakhtin (2002, p. 136):
Os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integram à existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles, submetendo-nos a uma reavaliação, fazendo-nos mudar no de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética reflete-se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la.
Ainda em conformidade com Bakhtin (2002), quando a
dialética se coloca como instrumento da evolução, a sociedade em transformação
abre espaço para integrar o indivíduo que igualmente se transforma e, neste
processo, nada permanece estável sem que seja dilacerado por suas próprias
contradições, a fim de volver-se revigorada, mas com equilíbrio e identidade
efêmeras.
Tanto a dialética, quanto o dialogismo, como instrumentos
da linguagem (discurso) são de suma importância para a implementação de
ideologias coletivas e consequentemente para a evolução sócio-histórica do
homem no que concerne à ininterrupta transformação de estados de poder. Todo
poder se sustenta pela consciência coletiva nascida a partir do discurso
ideológico. Todo poder é vivo e, como tudo o que vive, evolui, transforma-se
dialética e dialogicamente.
No
caminho das transformações por que passam todos os poderes, a dialética e o
dialogismo, como fenômenos determinantes da qualidade do discurso, estão
intimamente relacionados com os aspectos sincrônicos e diacrônicos da linguística.
O dialogismo está para a sincronia, assim como a dialética está para a
diacronia. Conforme Bakhtin (2002, p. 87):
a linguística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um sistema, tal como eles são percebidos pela consciência coletiva. A linguística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência, e que se substituem uns aos outros, sem formar sistema entre si.
Por fim, as afirmações
supra-expostas vêm para reforçar a nossa ideia de plurivalência e
plurilateralidade na formação de um discurso ideologicamente constituído, rumo
à sustentação de um poder fortemente constituído de ideologias que se firmaram
como consciência coletiva. Ainda em tempo, essa
questão levantada aqui a respeito da plurivalência e da plurilateralidade do
discurso merece ser melhor estudada tendo em vista a sua natureza bastante
ampla e o seu caráter, a princípio, original.
5.
Um diálogo de (contra)ditos
A partir deste ponto,
trataremos do discurso e do antidiscurso na construção do poder e de outras
atitudes de cunho social. Para exemplificar essa relação dialética evidente,
tomaremos como primeiro elemento de ilustração o embate ideológico entre os EUA
e aliados contra o terrorismo islâmico. De um lado, há por parte dos aliados a
sustentação de um discurso voltado para a celebração da paz com a derrocada do
terrorismo; todavia, a evidência de discursos aparentemente marginais ou
secundários tem se aclarado e deixa perceptível outros interesses, principalmente
os de ordem econômica. Há, deste modo, um discurso de aparências e outro, o
verdadeiro, que tenciona o controle de nações detentoras das maiores reservas
de petróleo do mundo, “coincidentemente” também minadas por ideologias que
pregam o terror como o único caminho para a liberdade. De outro lado, uma
parcela considerável dos povos mulçumanos combate com a finalidade de
implementar e sustentar o seu obsessivo poder econômico e teocêntrico – lógico
que a maioria não sabe ou não tem consciência ainda da real intenção econômica
por trás do discurso teocrático e morrem em nome de Deus e a mando do
“profeta”. Nesta ilustração, apoiados em Foucault citado por Demo (2002),
queremos chamar a atenção para um fato que consideramos importante: trata-se da
manifestação visível de uma das faces mais típicas da ideologia que é
dissimular, mascarar e esconder, na tentativa de assegurar, justificar e
“fortalecer” interesses. Fundamentados na observação atenciosa, notamos que os
dois discursos funcionam ora como discurso, ora como anti-discurso. São
discursos para a sua base de sustentação e anti-discursos em relação ao
discurso de outrem. Vale ressaltar também que há mais de um discurso em cada
discurso, ou seja, o que podemos chamar de discurso aparente e discurso real. Num
único discurso é possível dizer mais que o necessário, pode-se afirmar e negar
ao mesmo tempo; bem como dizer desdizendo o que disse. Conforme Demo (2002, p.
38), “o sorriso irônico comunica,
através do sorriso, o contrário. O humor negro comunica a tragédia como
diversão. Há silêncios ensurdecedores, ausências gritantes, desaparecimentos
estratégicos”.
Tomando como elemento de
análise a teoria polifônica de Bakhtin (1997), apresentada em sua obra problemas da poética de Dostoiévski; no
recorte supracitado, é notória a presença de discursos marginais que cortam o
discurso central de um lado a outro na tentativa de se mostrar e de se afirmar
como verdade, ainda que os propósitos não sejam assim tão éticos e morais.
Tendo em vista ser a
linguagem (discurso), a ideologia e o poder a espinha dorsal deste artigo,
tomaremos alguns textos como corpus para
análise, como anunciamos no início, a fim de exemplificar essa tal relação que
o signo exerce sobre a ideologia no processo de implementação de poderes
sócio-constituídos. Nenhum poder é totalmente isento do discurso ideológico,
seja ele autoritário, totalitário ou democrático; o que o diferencia dos demais
é a maneira de utilização do discurso como ferramenta de sustentação de suas
bases ideológicas, frente à manipulação da consciência coletiva. De igual modo,
é possível também afirmar que nenhum outro interesse humano está igualmente
isento do discurso polifonicamente intencional. E para mostrar esta
intencionalidade discursiva, tomaremos como o primeiro corpus de análise, a terceira parte da carta de Maquiavel (1999,
p.19), quando dedica a obra “O Príncipe” ao Magnífico Lourenço de Médici.
Receba, então, Vossa Magnificência, este pequeno presente, com a mesma intenção com que eu o envio. Se esta obra for diligentemente considerada e lida, vossa Magnificência conhecerá meu estremo desejo de que atinja a grandeza que o destino e suas demais qualidades lhe asseguram. E, se Vossa Magnificência, do ápice de sua plenitude volver, alguma vez, os olhos para baixo, perceberá quão imerecidamente suportei grande e contínua maldade do destino.
Maquiavel,
no seu discurso, na passagem inicial em que eloquentemente dirige-se a Lourenço
com certo ar de igualdade representado nas palavras “receba, então, Vossa
Magnificência, este pequeno presente, com a mesma intenção com que eu o envio”,
mostra a intencionalidade firme de imprimir sua vontade em relação à
vontade de Lourenço. Mais adiante, deixa claro que não tem a intenção de dar o
presente sem querer algo em troca. Não diz o que quer nem como quer, mas torna
isso evidente quando solicita que Lourenço de Médici, lá da altura de onde
está, olhe para baixo e o reconheça como aquele que, depois de ter sofrido as
agruras da vida, merece ser recompensado.
Para
sustentar interesses não bastam discursos vazios, o que basta são os discursos
forrados de intencionalidade discursiva, e isto é instrumento de especialistas
e não de leigos, afora prerrogativas obtidas por uns poucos esforçados.
Como
discurso de contraditos, entendemos todo aquele carregado pelo fenômeno da
dialética. O discurso pode simplesmente dizer algo, pode se contradizer; mas a
sua principal função é a de estar em desacordo com outros discursos, a fim de
se firmar como discurso privilegiado socialmente. Mas isso só é possível quando
o discurso nasce da interação social dos seus elementos, entre si e com outros
elementos.
É
importante não confundir o discurso das contradições com a teoria bakhtiniana
que trata do dito e do não-dito. O que estamos chamando de (contra)ditos aqui é
a força dialética do discurso e não o discurso não-dito, subentendido em outro
discurso. O discurso de contradição é, geralmente, carregado de não-ditos. E
isto é que o faz sutil e contundente ao agir em contraposição a outro discurso.
Conforme
Bakhtin citado por Freitas (1999, p. 145):
A entonação sempre está na fronteira do verbal com o não verbal, do dito com o não dito. Na entonação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é na entonação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor ou interlocutores: a entonação é social por excelência. Ela é especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante.
Freitas
(1999, p. 145), quando interpreta Bakhtin, afirma que “não é só a entonação, mas toda a estrutura formal da fala que depende,
em grau significativo, da relação do enunciado com o conjunto de valores
presumidos do meio social onde ocorre o discurso”.
Todo
discurso é produzido, indubitavelmente, a partir das relações que possui o interlocutor
com o meio em que está inserido, levando em conta, naturalmente, os fatores
tempo, espaço, qualidade intelectual do(s) interlocutor(es) etc. Os ditos e os
(contra)ditos de um discurso, bem como os ditos e os não-ditos podem não
produzir os efeitos desejados se um ou mais dos elementos envolvidos não
estiverem devidamente harmônicos entre si.
A
fim de ilustrar o discurso de contradição, encontramos excelentes exemplos nos
poemas sacros do poeta barroco Gregório de Matos Guerra que, ao discordar da política
da época, escrevia contrapondo-se àquelas atitudes. Gregório de Matos, ao ser
degredado para a África, em virtude de ter escrito alguns textos que
‘afrontavam’ a burguesia portuguesa no Brasil, escreveu alguns versos de
despedida de onde retiramos o fragmento transcrito abaixo.
No Brasil a fidalguia
no bom sangue nunca está,
nem no bom procedimento,
pois logo em que pode
estar?
Consiste em muito
dinheiro,
e consiste em o guardar,
cada um o guarde bem,
para ter que gastar mal.[5]
Não
é difícil encontrar os (contra)ditos dentro do discurso de Gregório de Matos.
Ao usar a Literatura como um instrumento contundente de denúncia, ele contradiz
a burguesia da época pela falta de gentileza e pelos modos como os fidalgos
tratavam a riqueza, ora ostentando-a, ora com avareza. Para Bakhtin citado por
Freitas (1999, p. 147), “O poeta,
afinal, seleciona palavras não do dicionário, mas do contexto da vida onde as
palavras foram embebidas e se impregnaram de julgamento de valor”. Percebe-se
daí que todo discurso, a começar pelo poético, é uma exposição dos
acontecimentos de um dado contexto, compreendendo os fatores ideológicos
organizados segundo as ordenas cronológicas e espaciais. Vale dizer que os
(contra)ditos são subjetivos e só podem ser percebido pela inter-relação dos
elementos discursivos.
O
discurso, além de contradizer atitudes, pode incitar contra elas, alertar ou
“avisar” que algo não está bem e “desse
jeito não dá mais”, conforme afirmou, recentemente, o compositor Geraldo
Vandré em entrevista para o site Clique Music[6],
quando falou do discurso impresso no teor de suas composição. Para ilustrar
mais esta virtude do discurso, doravante trabalharemos a música “Para não dizer
que não falei das flores”, tida aqui como corpus
de enorme natureza polifônica, a começar pelo próprio título que apresenta
a intenção discursiva de tornar evidente o não-dito, ou seja, além de falar de
todas as coisas que disse, também se falou de flores.
Caminhando e cantando e
seguindo a canção
Somos todos iguais, braços
dados ou não
Nas escolas, nas ruas,
campos, construções
Caminhando e cantando e
seguindo a canção
Vem, vamos embora que
esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não
espera acontecer
Na
primeira estrofe, o emissor do discurso chama o interlocutor para uma reflexão
acerca do conteúdo da canção, convoca a todos para a luta, que, mais adiante,
torna-se incontestável, não importa se estudante, homens da cidade ou do campo,
se trabalhador ou não; todos são chamados, porque “quem sabe faz a hora, não
espera acontecer”.
Essa
canção foi escrita no auge da Ditadura Militar no Brasil, vários foram os
movimentos que se opuseram a esse regime autoritarista, mas nenhum foi tão
representativo quanto o poema “Caminhado” de Vandré, embora ele tenha negado
sempre o verdadeiro discurso deste e de outros escritos naquela época.
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo canhão
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão
Nos
versos das estrofes dois e três, o discurso personifica a angústia social causada
pelo regime militar, quando fala da fome e da incerteza causadas pelo golpe. A
partir desse ponto a palavra flor passa a ser um signo ideológico fortemente
carregado de sentidos e de intencionalidade discursiva, contrapondo-se ao outro
discurso, metaforicamente, caracterizado pela expressão: “antiga lição”,
explicitada no final do terceiro verso da terceira estrofe.
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Na quarta estrofe, todos são novamente convocados para a luta contra a ideologia
dominante e isto se confirma quando nas palavras: “somos todos soldados, armados ou não”.
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição
Na última estrofe, há a consolidação do confronto entre os dois discursos, o velho e o novo. E chega a sugerir o embate físico entre eles, quando, por meio da alegoria “as flores no chão” sugere corpos defuntos caídos depois de uma luta armada. Ainda nos primeiros versos desta mesma estrofe, os amores representam os interesses bairristas, patrióticos, flores as pessoas, certeza a convicção, e a expressão “a história na mão” denota a vitória das flores sobre a “antiga lição”. Essa intencionalidade é reforçada no último verso, quando “a nova lição” passa a ser ensinada em lugar daquela suplantada pela nova ideologia.
Geraldo
Vandré pode negar até morrer a verdadeira intenção que o levou a escrever
“Caminhando”, mas o que ninguém, em sã consciência, pode negar é a relação que
os signos ideológicos empregados intencionalmente ou não na letra da música
tiveram com o momento de angústia social causado pela Ditadura Militar no
Brasil.
Acreditar
que o homem um dia terá domínio absoluto sobre a linguagem é negar a evolução
de ambos. Mas acreditar na aceleração urgente rumo ao domínio do discurso
expresso pelo signo ideológico, a fim de construir uma consciência coletiva, é
acreditar que num futuro não muito distante, o homem possa reger a sociedade
por meio de atitudes que não vilipendiem os direitos “sagrados” de si e de
outrem. E esta deve ser a razão porque se discutem tanto as relações entre
linguagem, ideologia e poder. O signo é poderoso em si e, como o hidrogênio em
contato com o ar, quando interage com o contexto, EXPLODE.
6.
Um último diálogo
A
linguagem é um dos mais importantes, se não for o mais importante, dos
instrumentos de interação social entre os povos. Ao longo de seu
desenvolvimento, recebeu várias influências de outras ciências do conhecimento
humano, tais como a Sociologia, a Filosofia, a Psicologia e a Linguística. O
seu principal objetivo é veicular e consolidar a cultura humana, dando-lhe um
caráter de universalidade.
É
por meio da linguagem que as ideologias são atritadas a fim de gerar a
consciência coletiva e é por intermédio de tal consciência que se chega à
consolidação de atitudes nobremente sociais como o poder e suas relações
benéficas de igualdade, fraternidade e, acima de tudo, liberdade na acepção
mais ampla da palavra.
Que
a plurivalência e a plurilateralidade dos discursos possam se fermentar nas
técnicas dialética e dialógicas, desencadeando a práxis rumo a um mundo melhor
para se viver, fazer, ser e, sobretudo, conviver.
Em
face ao exposto, as contradições, os ditos e os não-ditos do discurso são
benéficos ao homem, quando utilizados para dirimir conflitos, mas podem ser
infinitamente venéficos, quando usados pelos ardilosos na manipulação de
interesses, a fim de sustentar déspotas à frente de poderes tiranos que nada
contribuem para o melhoramento social, político, econômico e cultural do homem.
Referências:
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BAKHTIN,
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Bonaparte; trad. J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997.
VICENTINO, Cláudio. História geral. 8.ed. São Paulo:
Scipione, 1999.
Observação. Este texto foi
originalmente publicado na revista Praxis, vol. 2, ano 2003 e na revista
Contrapontos, vol. 4, série 3, ano 2004.
[1] O
autor é Licenciado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia, bacharel em
Direito pelas Faculdades Integradas de Cacoal; especialista em Metodologia e
Didática do Ensino Superior e em Língua Portuguesa pelas Faculdades Integradas
de Cacoal e em Design Instrucional pelo Centro Universitário CENAC/SP; é mestre
em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
[2] Obra publicada na Rússia em 1929 e assinada
por Volochinov, mais tarde atribuída a M. Bakhtin.
[3] Ciência constituída nos anos 60 e que tem como
principal objeto, segundo Gregolin (1995), “o
estudo da discursivização”.
[4]
Conforme Durkheim (1973), por consciência coletiva entende-se o resultado da
soma de valores sociais e sentimentos comuns a uma parte considerável da
comunidade, garantindo, desta maneira, a união dos indivíduos de uma sociedade
e dos valores perpassados através das gerações.
[5].
Gregório de Matos. In Gregório de Matos, São Paulo: Abril – (Literatura
Comparada).
[6] .
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