Por Thonny Hawany
O amor possui muitos e diversos significados, daí a impossibilidade de apresentá-lo, inicialmente, atribuindo-lhe um conceito que seja capaz de dar conta de sua total significação. No entanto, esta intrincada tarefa não nos impedira de tecer algumas considerações que julgamos pertinentes para apontar o tipo de amor a que chamamos de princípio de direito no título deste artigo.
A palavra amor vem do latim (amor) e, como se pode ver, mesmo diante de séculos de história, em nada mudou, considerando sua estrutura morfológica; todavia, não se pode dizer o mesmo quanto a sua semântica, haja vista que, modernamente, significa afeição, (com)paixão, desejo, satisfação, bem-querer, amizade, atração, aceitação, sexuar, fraternidade, generosidade, altruísmo e muito mais se considerada sua fértil característica polissêmica.
O conceito mais quotidiano da palavra amor é o que diz respeito à criação de vínculos emocionais entre dois indivíduos, ou entre um indivíduo e coisas, quer sejam tangíveis (objetos e animais), quer sejam intangíveis (uma divindade, um espírito, por exemplo); no entanto, sua acepção, como palavra ou sentimento, vai além de significar qualquer sensibilidade entre pessoas e coisas, podendo ser o próprio ato relacional entre os sujeitos da ação de amar.
Estudiosos do amor classificam-no de diversas maneiras, na tentativa de explicar sua ação multifacetada e multidirecional no comportamento intersubjetivo. As multifaces e multidireções do amor se prendem dinamicamente. Embora essa não possa prescindir daquela, elas se diferem pelo fato da primeira estar para as manifestações em si do amor (eros, ágape e outras) e a segunda para os sujeitos da ação do mesmo amor (indivíduo(s) versus indivíduo(s), ou indivíduo(s) versus deuses e coisas etc). O amor é multifacetado porque se apresenta de várias maneiras e é multidirecional porque possui sujeitos e objetos diferentes.
O amor eros é o amor dos poetas, e, por ele, os indivíduos se acometem de forte atração física e apelo sensual em suas relações corpóreo-afetivas. O amor ágape, no entanto, consiste no que se manifesta de forma altruísta e materializa-se nas ações de generosidade de um indivíduo com o outro. Dedicar-se ao outro vem sempre antes dos interesses pessoais para os que desenvolvem o amor ágape como fundamento de suas relações interpessoais.
O amor a que chamamos de princípio de direito é este último o ágape, e está nele a base do Direito Natural. Trata-se de um amor incondicio-racional e, tanto por isso, traduz-se como poderoso e confiável instrumento de regência da conduta humana pelo Direito Natural.
O amor não constitui, embora devesse, princípio determinante para todas as correntes do direito. França (1971) apud Martins (2005), ao discorrer sobre a natureza dos princípios em direito, assinala a existência de quatro correntes; “a negativista, que reconhece apenas a lei como regra jurídica; a positivista, que aceita a aplicação dos princípios gerais do direito, mas nem sempre vinculados ao ordenamento positivo; a jurisprudencialista, que reconhece aqueles princípios da atividade dos Tribunais; a escola de Direito Natural, que amplia o âmbito dos princípios gerais do Direito àqueles que existem na natureza das coisas, tenham sido, ou não, consagrados pelo legislador”. Se os princípios são aqueles que estão na natureza das coisas, então o amor é princípio de direito por constituir a base natural das relações humanas. Embora não haja consenso geral entre os estudiosos do direito, esta última corrente, a meu ver, é, sobremaneira, a raiz de todas as outras já que o Direito Natural constitui-se como base primeira para o direito positivo e jurisprudencial. O direito, antes de se positivar, preexiste como normas naturais desenvolvidas pelo homem para regular suas relações interpessoais. Assim o sendo, nossa tese ganha força na corrente dos jusnaturalistas e, tanto por isso, torna-se possível cogitar que o amor, como princípio de direito, constitui-se forte instrumento de inclusão social nas relações entre o eu, o tu e o outro. Não obstante, a falta deste mesmo amor consiste numa extensão do mesmo princípio com função antagônica de excluir. Em suma, se o amor inclui, sua falta excluir.
Para Lévinas (2009, p. 43), o amor é a base de uma “sociedade senhora de todas as circunstâncias e detalhes [...] amar é existir como se o amante e o amado estivesses sós no mundo”. Nas relações intersubjetivas, o eu e o tu se unem na composição de um nós social. “O amor é o eu satisfeito pelo tu [...]. O calor afetivo do amor realiza a consciência desta satisfação, deste contentamento, desta plenitude encontrados fora de si, excêntricos”. (ibidem). E nesta relação de amor entre o eu e o tu não cabe o ele. “A sociedade do amor é uma sociedade a dois, sociedade de solidões, refratária à universalidade” (ibidem). No amor em que só cabem o eu e o tu, ao ele alienígena restam-lhe apenas as margens. E daí nasce a marginalização das chamadas minorias: negros, índios, idosos, homossexuais etc.
Ao falar de amor como princípio de direito, não podemos deixar de falar da influência exercida pelas religiões nas relações entre os sujeitos sociais desde as eras mais primitivas até os dias de hoje. Atualmente, a base existencial do poder religioso tem sido o amor aparentemente incondicional; no entanto, “a crise da religião na vida espiritual contemporânea deriva da consciência de que a sociedade ultrapassa o amor, de que um terceiro assiste ferido ao diálogo amoroso, e de que, em relação a ele, a própria sociedade do amor é injusta [...]” (LÉVINAS, 2009, p. 44). A religião que deveria ser um instrumento de catarse e união serve-se, quase sempre, aos interesses das classes dominantes do eu e do tu para segregar e oprimir o outro.
O fato de o outro não se parecer com eu, ou seja, não possuir características singulares às que servem de base ética, moral, psicológica e física do eu, leva um indivíduo ou grupo de indivíduos a discriminar esse outro por ser diferente. “A certeza de que a relação com o terceiro não se parece com minhas intimidades, comigo mesmo nem com o amor do próximo compromete” (ibidem). Se o outro não se parece com o eu nem com o tu, deve permanecer fora das fronteiras do amor entre os dois primeiros. Assim agem os grupos sociais quando discriminam esse ou aquele membro pelo crime de desemelhança – e assim os consideram criminosos –, a exemplo do que ocorre com os negros albinos em relação aos próprios negros na áfrica, com as pessoas com deficiência em relação aos chamados normais, com os homossexuais em relação aos heterossexuais, com os índios e os não-índios etc. É lei do grupo, é ordem, é norma: se o outro é diferente, é desigual, então não serve para compor o amor do eu com o tu. Para Lévinas (2009), a crise do amor e da religião está na descoberta do verdadeiro social que transcende a sociedade padrão.
O amor, como princípio garantidor do direito do outro em lutar por sua permanência e reconhecimento no meio social, é justo e fraterno. Nenhuma sociedade que marginaliza os seus diferentes sobrevive por muito tempo. Somente a união do todo é garantia de perpetuidade de um grupo social. Não basta que o eu e o tu promovam uma aceitação superficial do outro, é preciso que esse outro seja incluído de modo a poder participar ativamente das decisões que nortearão os interesses do grupo a fim de garantir sua liberdade e consequentemente a liberdade do todo. “Essa soma de forças só pode nascer do conjunto de muitos: mas a força e a liberdade de cada homem, como primeiros instrumentos de sua conservação, de que modo ele as empregará, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Essa dificuldade, [...], pode-se enunciar nestes termos: encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, só obedeça, portanto, a si mesmo, e permaneça tão livre como antes. É esse o problema fundamental para o qual o contrato social da a solução” (ROUSSEAU, 2005, p. 29). Qualquer aceitação por piedade é superficial e incompleta. O outro só estará devidamente incluído no meio social, quando o amor do eu e do tu agir na catalisação de uma vontade fraterna a altruísta. E assim o sendo, terá o amor do eu e do tu exercido o seu papel como princípio máximo de direito nas relações de vontade intersubjetivas; terá ele composto, a partir das três pessoas do discurso, um todo social em que cada um se sinta livre como sujeito coletivo sem a sensação de ter perdido sua liberdade individual por assumir um novo papel.
Nas sociedades modernas e liberais, o verdadeiro amor vem rompendo as barreiras impostas pelos ideais fundamentalistas e maniqueístas do bem e do mal, do certo e do errado para se manifestar como elemento de tolerância e de aproximação entre o eu, o tu e o outro da forma como ele é – sem máscaras.
O amor como princípio de direito se justifica no texto da quarta geração dos direitos humanos. O direito à democracia, a informação e, principalmente, ao pluralismo constituem fatos irrefutáveis à necessidade de convivência entre os indivíduos sociais. Negar o direito do outro a compartilhar do mesmo amor que o eu e o tu, é falta de generosidade, é ausência de altruísmo, é, acima de tudo, não reconhecer o direito que esse outro tem de compartilhar do amor social existente entre o eu e o tu. Se “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (DDH, art. 1º) e se ”são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (DDH, art. 1º); não se justifica ser este ou aquele homem apartado do amor universal (ágape) em virtude de sua “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional, ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”. (DDH, art. 2º, I).
A prepotência do eu e do tu social impede a aproximação do outro. O nós (eu+tu) que deveria, por puro ato de amor, estender a mão ao outro, geralmente, o faz, não por amor, mas para agredi-lo e para apontar o reles lugar onde esse outro deve recolher-se na sua máxima insignificância. O eu e o tu juntos se consideram modelos ideais e, tanto por isso, segregam o outro pelo fato de ser diferente. Agindo desta forma, o eu e o tu se comportam soberanos e como tal ditam as normas que legam o outro à condição de ser menor – E desta premissa nasce as chamadas minorias. São elas constituídas dos diversos outros alienados do convívio do eu e do tu soberanos.
O objeto de interesse dos Direitos Humanos converge-se para a união efetiva das três pessoas do discurso na composição de uma sociedade única e igualitária. A união entre o eu, o tu e o outro constitui-se como o mais perfeito ato de amor como princípio de direito, é, acima de tudo, a manifestação irrestrita do princípio da alteridade como suporte de liberdade, de isonomia e de dignidade da pessoa humana. A alteridade a que evocamos não é o simples ato de inclusão do outro na sociedade do eu e do tu, é, acima de tudo o mais, o exercício de inclusão dando-lhe condições para manter-se igual considerando-o na medida de sua igualdade ainda que desigual do igual. O respeito ao outro como outro inserido no amor do eu e do tu constituem pura celebração do princípio da alteridade. Permitir ao outro gozar do direito, que já é seu, é um nobre ato de justiça feita como caritas (força que conduz um indivíduo à generosidade extrema e desinteressada no fomento à paz social). Segundo Assis (on-line), “[...] a justiça corresponde a um ato de amor desinteressado. Algo semelhante à criação divina, visto que Deus (justo e misericordioso) criou o mundo não para a sua glória, mas como um ato de amor pela humanidade. Praticar a justiça como caritas, como um ato de amor desinteressado, como a manifestação mais pura da autonomia da vontade ou livre-arbítrio, constitui um esplendor ético porque prescreve uma ação boa por si mesma: amai como Deus vos ama”.
Assim sendo, não se pode falar de amor ao próximo quando este outro-próximo está próximo por conveniência de normas estabelecidas pela sociedade “noscentrista” do eu e do tu como centro de toda a razão. O amor como princípio de direito deve ser imensurável e, como tal, é preciso que seja incondicional, fraterno, generoso e altruísta. Amar o outro é aceitá-lo, respeitando-o integralmente da forma como ele é. Alteridade não é mera aceitação, é integração total, é inclusão, é amor incondicional. Por fim, entendemos que o papel de criação de uma sociedade igualitária não cabe ao indivíduo comum, mas ao Estado Democrático de Direito, tendo em vista ser dele a responsabilidade por garantir a dignidade da pessoa humana.
Referências:
ASSIS, Olney Queiroz. Disponível em: http://cjdj.damasio.com.br/?page_name
=artigo_253_2005&category_id=3. Acesso em: 10 de mar. De 2010.
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre alteridade. 4.ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2009.
MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow. Direito ao pão novo: princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. São Paulo: Pillares, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: CID, 2005.
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