terça-feira, 15 de março de 2022

O Candomblé é uma religião monoteísta

 O Candomblé é uma religião monoteísta ou politeísta?

 

Thonny Hawany[1]

 


Hoje, vou falar sobre algo que tem me intrigado nos últimos tempos: o fato de muitos adeptos de religiões de matriz africana acharem que são de religião politeísta. Vou começar com uma pequena história onde essa inquietude toda começou. Confesso que até aquele momento, esse tema não me trazia nenhuma preocupação.  Vamos lá então! Certa feita, eu participava de um evento cultural afro-brasileiro, na cidade de Ariquemes, no Estado de Rondônia, juntamente com outros adeptos do Candomblé, quando um dos palestrantes do evento chamado Silvestre Antônio Gomes Santos perguntou a todos ao iniciar a sua fala: “Nós somos de religião monoteísta ou politeísta?”

A pergunta veio acompanhada com uma nuvem de dúvidas. Era uma questão instigante. Ninguém esperava que o evento começasse por nos levar a tamanha reflexão.  No primeiro momento, o silêncio imperou no recinto. Apesar de conhecer a resposta, preferi ficar calado para ouvir o que os demais pensavam sobre o assunto.

Depois de alguns minutos, o silêncio ensurdecedor foi quebrado por alguém que afirmou, com veemência: “o Candomblé é uma religião politeísta.” E justificou com os nomes de alguns orixás[2]. Essa posição foi acompanhada pela maioria dos presentes. Na sequência, um pequeno grupo assumiu que não sabia dizer. E, por fim, pedi a palavra e afirmei ser o Candomblé uma religião monoteísta justificando com alguns itans[3], nos quais está registrada a existência de um Deus Único Criador do Ọ̀run (Céu) e do Àiyé (Terra).

O tema gerou caloroso debate, mas ao final, depois das excelentes explicações dadas pelo palestrante, todos os presentes se convenceram. Penso! Desde então, desmistificar e ensinar que o Candomblé é uma religião monoteísta tem sido uma de minhas importantes missões como sacerdote de religião afro-brasileira.

Com o propósito de verificar a quantas anda o entendimento a respeito do assunto, tenho repetido a mesma pergunta do palestrante de Ariquemes por onde passo e os mesmos equívocos têm se confirmado tanto com os de fora[4] quanto com os de dentro[5].

Essa falta de conhecimento a respeito do Candomblé e das demais religiões de matriz africana por parte dos de dentro e dos de fora tem sido uma abundante fonte onde bebe o preconceito, além de ser uma das principais portas por onde entram os ataques físicos e morais que nos fere gravemente e nos impede de crescer como religião e como religiosos.

Para dar seguimento, queremos lembrar o leitor que o Candomblé é uma religião brasileira com fortes influências de diferentes povos africanos, trazidos para o Brasil na vergonhosa situação de escravos e, que, por isso, divide-se em mais de uma Nação e, dadas as dimensões territoriais do Brasil, fragmenta-se, todos os dias, ininterruptamente, em inúmeras famílias com vieses muito particulares. Em face disso e para facilitar a apresentação do nosso tema, não falaremos aqui de todas as culturas, centrar-nos-emos no Candomblé com foco na Nação Ketu, cuja cultura e língua são legados do povo iorubá, vindo para o Brasil de uma região, na qual hoje estão localizados os países Nigéria, Benin, Togo, Ghana e Serra Leoa.

Voltando ao tema central de nossa discussão: monoteísmo e/ou politeísmo, Beniste (2020, p. 27), em sua obra Ọ̀run Àiyé, ao discorrer sobre “Deus – O Poder Supremo” afirma que:

Deus é Um. Não muitos; a Terra e toda a sua plenitude pertencem a Este único Deus; é o Criador do universo; abaixo Dele está a hierarquia dos Òrìṣà, os quais recebem a incumbência de dirigir os seres humanos, administrar os vários setores da natureza, servindo de intermediários entre os homens e Ele.

Como se vê nas palavras de Beniste (2020), Deus é um só e não muitos. Deus, na cultura iorubá, tem muitos nomes, mas é um só Ser. Ainda conforme Beniste (2020, p. 27),

entre o povo yorubá (sic), os antropônimos são muito significativos. Todo nome possui características próprias. A ninguém é dado um nome sem que haja razão para isso, e todos eles, invariavelmente, exprimem alguma história – relacionada com acontecimentos, atributos, caráter e personalidade. 

Se com as entidades espirituais, seres humanos, animais, plantas e objetos os nomes iorubás precisam ter significados justificados nas histórias que revelam atributos e características de cada ser ou coisa, com o Senhor da Criação, não seria diferente. Deus tem muitos nomes na cultura iorubá, mas o seu nome mais comum está ligado ao fato d’Ele ser o Senhor dono do Céu: Ọlọ́run, nome composto por duas palavras aglutinadas, a saber: Olo (Senhor) Ọ̀run (Céu) = Senhor do Céu.

Em síntese, independente do nome que recebe e da forma como é cultuado, o importante aqui nesta reflexão é entender que Deus é um só e não muitos, fato que nos revela a melhor resposta para a pergunta do palestrante de Ariquemes, qual seja: o Candomblé e todas as religiões de matriz africana são religiões monoteístas. E os orixás não são deuses? Alguém pode perguntar. Respondo. Não! Os orixás não são deuses, são entidades ancestrais sagradas, cuja missão é auxiliar o Grande Criador em sua obra, transformando e administrando tudo o que há no Ọ̀run (Céu) e no Àiyé (Terra).

 

Referencial:

BENISTE, José. Ọ̀run Àiyé. 14. Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

Fonte da Imagem: https://segredosdomundo.r7.com/mitologia-ioruba/


[1] . Thonny Hawany (Antônio Carlos da Silva Costa de Souza) é bàbálórìṣà afro-brasileiro.

[2] . Entidades ancestrais do Candomblé.

[3]. Histórias, lendas que versam sobre a cultura iorubá.

[4] . Os de fora são a nossa referência às pessoas não adeptas ao Candomblé.

[5] . Os dentro são a nossa referência às pessoas adeptas ao Candomblé.