O presente texto é produto de estudos feitos para apresentação de um trabalho sobre Direito Próprio do Índio na disciplina de Direito Indígena ministrada pelo exímio professor Fabrício Fernandes Andrade.
Por Thonny Hawany
Sabe-se, pois, historicamente, que quase a totalidade dos povos primitivos, dos quais se têm notícias, possuíam um sistema de normas jurídicas tão complexas e tão eficientes quanto as que hoje existem nas chamadas nações civilizadas. Os índios brasileiros não são a exceção, cada povo possui um conjunto de normas e de regras constituídas, secularmente, que ditam os direitos e os deveres de cada indivíduo e também as sanções a serem aplicadas no caso daqueles membros efetivos que contrariam, por ação ou omissão, os usos, os costumes e as tradições preexistentes na tribo. O direito, que aqui chamaremos de direito próprio do índio, constitui-se de um conjunto de regras que, como já vimos, acompanham os usos, os costumes e as tradições de cada um dos povos. É, portanto, o que se pode chamar de um direito consuetudinário Indígena em terras do Brasil. (Na foto, a advoga indígena Joênia Batista Carvalho Wapichana).
Preliminarmente, não se pode, ou se deve confundir direito próprio do índio com o chamado direito indígena, este é o direito pensado e codificado pelo Estado para regular suas relações com os povos indígenas, a exemplo da Lei nº 6.001/73, mais conhecida como Estatuo do Índio e dos artigos 26, XI, 231 e 232 da Constituição Federal; enquanto que aquele é um direito cunhado, pois, à luz das relações sociais tribais. Segundo o nobre professor Fabrício Andrade (on-line), depois da Constituição de 1988, “a perspectiva da questão indígena, nesse contexto, ganhou novos ares por conta desse novo panorama constitucional. Hoje é tudo mais leve, ainda que se admita que muito falta a se fazer. Os índios, antes não-declarados ou excluídos, emergiram numa postura agora de resgate da sua identidade. Há muito ainda o que avançar, reconhece-se”.
A ideia de os povos indígenas possuírem um direito próprio assombra e tira o sono de muitos juristas brasileiros, para os mais tradicionalistas é impossível que dois direitos convivam no mesmo território, ou seja, que o chamado direito próprio do índio seja aplicado paralelamente ao Direito Estatal. Segundo Marés apud Araújo et alli (on-line), “as concepções dogmáticas do Direito negam a possibilidade de convivência, num mesmo território, de sistemas jurídicos diversos, acreditando que o Direito Estatal seja único e onipotente”.
Se precisar se esforçar muito, é possível ver que o direito próprio do índio foi acolhido indiretamente pela Constituição Federal que não o chamou de direito, mas de usos, costumes e tradições. Assim sendo, pode-se dizer que, no art. 231 da CF, o Estado recepcionou o direito próprio do índio de uma forma que, a depender de seus interesses sócio-políticos, poderá ele, o Estado reconhecer tal direito quando bem lhe convier e negá-lo quando sua manifestação for excessiva ou atentar contra os princípios maiores do arcabouço jurídico estatal.
Nesse sentido, poderíamos dizer que a expressão “direito próprio do índio” foi suprimida no art. 231, por motivos óbvios, a saber: deve haver, de modo explícito, apenas um sistema jurídico para cada nação, por mais que tal nação seja formada por povos de diferentes etnias e que cada um desses povos possua seu conjunto de norma, escritas ou consuetudinárias. Martins (2005, p, 127), afirma que “aquilo que o homem não consegue manter sob seu poder, sob seu jugo, deve ser nulificado. Melhor dizendo, aquele espelho que não reflete a sua própria imagem não merece consideração; para esse homem, inexiste qualquer imagem que seja divorciada da sua”. Daí a tendência de nulificar, invalidar ou camuflar o que é próprio do outro para que, deste modo, sobressaia apenas o que melhor lhe aprouver.
Na Coleção Educação para Todos, intitulada de “Povos Indígenas e a Lei dos ‘Brancos’: o direito à diferença”, o direito próprio do índio é tido como mera fonte secundária do Direito Estatal e isso não passa de um desejo e de uma vontade do legislador etnocentrista. Segundo Marés apud Araújo et alli (on-line), “A invenção da lei, apesar das legitimidades supostas e não raras vezes impostas, formou-se como sistema que não admite concorrência e, por isso mesmo privilegia uma única fonte e além de descartar como não-direito tudo aquilo que não está claramente inserido no sistema”. Para Colaço apud Martins (2005, p. 127), “as populações indígenas possuíam as suas regras de convívio social, o direito consuetudinário, que lhes foi negado por falta de compreensão e respeito, e também pelos interesses da dominação colonial”. Com isso, dizer que o direito há muito tempo se manifestava nas terras brasileiras antes mesmo da chegada do europeu no século XVI.
Para ilustra o que chamamos de direito próprio do indo, recorreremos ao julgamento da Ação Criminal de nº 92.0001334-1, pela justiça Federal de Roraima, que deixou de condenar o índio Basílio Alves Salomão pelo homicídio do também índio Valdenísio da Silva. O Crime foi cometido em 1986 e julgado em 2000, quatorze anos depois. O índio homicida, na oportunidade em que cometera o crime, foi julgado por um Conselho, composto por índios de grande influência na tribo e foi condenado a cavar a sepultura para enterrar a vítima e também à pena de banimento, que segundo antropólogos, não é somente a maior pena aplicada pelo Conselho, mas a maior pena que um índio pode receber. Para quem recebe tal pena, privando-lhe do convívio com os seus entes queridos (família e amigos tribais) é o mesmo que perder a liberdade ao ser enclausurado em celas (no caso da pena em decorrência da aplicação do Direito Estatal).
Por entender que o índio Basílio afastado de seus entes queridos a, aproximadamente, 14 anos, já havia recebido a devida punição e cumprida a pena aplicada pelo seu próprio povo; no decorrer dos debates, o Ministério Público Federal pediu a absolvição do réu que foi absolvido por sete votos a zero. Com essa decisão, o Tribunal do Júri acabou por reconhecer a eficácia do direito próprio do índio evitando que ocorresse o bis in idem penal.
Na decisão do Tribunal do Júri que julgou o índio Basílio Alves Salomão há dois pontos que merecem destaque: o primeiro é o fato do reconhecimento do direito próprio do índio e o segundo é a incongruência em aceitar a pena de banimento como válida, expressamente, vedada pela Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso XLVII, alínea “d”.
Ainda analisando o caso de Roraima, percebemos que o direito próprio do índio, excepcional e acertadamente, julgou e penalizou o índio Basílio Alves Salomão pelo homicídio que cometera contra o índio-vítima Valdenisio da silva; tanto por isso que tal decisão foi acatada pelo Tribunal do Juri. No entanto, esse mesmo direito que se fez eficaz no caso em tela, secundo a Justiça Federal de Roraima, pode não o ser se condenar indivíduos a penas que vão além do previsto e/ou do permitido pelo arcabouço jurídico brasileiro. E essa dicotomia é o que leva os pensadores do direito a se digladiarem, uns em favor do reconhecimento expresso de um direito próprio do índio e outros pelo não reconhecimento de tal direito e se justificam pela incongruência de conviver num mesmo territórios dois sistemas jurídicos distintos.
Na perspectiva de Andrade (on-line), para “a FUNAI e a FUNASA, são mais de 300 mil índios no Brasil, embora dados do IBGE indiquem que sejam mais de 700 mil”, divididos em inúmeros povos e comunidades. O fato de haver diversas etnias, leva-nos a antecipar a existência de diferentes usos, costumes e tradições. Em se tratando do índio e a sua evolução no espaço e no tempo, há os que avançaram histórica e culturalmente, mas também há outros que, por serem menos ou nada integrados, ainda cometem, em nome de uma ética e de uma moral próprias, atos bárbaros, a exemplo das penas de morte impostas a crianças com deficiência mental, física e/ou ligadas a fenômenos que a aldeia, por não ter explicações, acaba atribuindo a elas diretamente.
Para Martins (2005, 127), “falar de um direito dos povos indígenas, é, pensar em um direito sem leis escritas, no qual os ensinamentos são transmitidos de forma oral e a observação constitui fonte importante de aprendizado”. Deste modo, não há como negar a existência de um direito que seja próprio da cultura e das tradições indígenas. O problema deflagrado pela existência de direito próprio do índio leva-nos à seguinte questão, cuja resposta, deixo para os grandes doutrinadores. Como admitir e quando admitir o direito próprio do índio sem que o fato de aceitá-lo macule a soberania das leis nacionais e sem que a sua negação signifique desrespeito à diversidade?
Em face de todo o exposto, negar a existência de um direito próprio do índio é uma questão de política nacional, dizer que ele não existe é um contrasenso acadêmico que nega, em tese, as bases da sociologia e da antropologia jurídicas, bem como da própria Ciência e Teoria do Direito. Onde há um ou dois indivíduos convivendo, há direito. Se esse direito é próprio do indivíduo ou do Estado, essa já uma questão a ser dirimida pelos doutrinadores mais experientes.
Referências:
ANDRADE, Fabrício Fernandes Andrade. O direito indígena: o índio, a índia. Disponível em: http://professorfabricioandrade.blogspot.com/2010/03/o-direito-indigena-o-indio-india.html. Acesso em: 27/05/2009, às 14h41min.
ARAÚJO, Ana Maria et alli (org). Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET14_Vias03WEB.pdf. Acesso em: 23/05/2010, às 17h36min.
MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow. Direito ao pão novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. São Paulo: Pillares, 2005.
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Belo paradoxo jurídico amigo; se o direito deve nascer das relações sociais e ser desta, valor e norma, como negar este preceito no caso do direito construído pelo índio durante séculos de existência? o grande dilema, aqui instaurado, é termos dois corpos existindo ao mesmo tempo no espaço; tal qual na ideologia americana, um tem que perecer; caracteristica básica da dominação e teoria da outremização; belíssima teoria contestatória deste caráter dominador; abraços e parabéns pelo texto;
ResponderExcluirThonny, passei para agradecer pelas referências tão especiais feitas a mim no seu rico texto. Aliás, é importante destacar que, em pesquisa no google, não há outros trabalhos publicados na net sobre o tema. O seu texto vai explodir de acessos. Isso já aconteceu com outra turma na qual ministro Direito Indígena. Detalhe: só que não citaram o autor... hehehehehe
ResponderExcluirKaíke Maldanr Antonio, 1ºperíodo de ciencias contábeis, turma A
ResponderExcluirTONI, segundo meu entendimento qualquer desvio das normas gramaticais pode ser considerado vícios de linguagem e que linguagem é todo e qualquer meio de comunicação humana, sujeita a transformações, individualizações e o meio em que se vive.
Thiago Felisbino Teixeira, 1º período de Ciências Contábeis, turma A.
ResponderExcluirProfessor, não irei falar em vícios de linguagem nem sobre português, mas eu gostaria de dar minha opinião sobre a lei que defende os índios, eu acho que é bom pra eles e concordo até certo ponto, pois eles deveriam pagar sim pelos crimes que eles cometem na civilização, isso porque eles atualmente são mais espertos, e não mais aqueles ingenuos de 20, 30 anos atraz, eles sabem muito vem quando eles estão fazendo coisa errada tanto que eles se escondem por traz das suas tribus onde a lei não os atingem, isso sem falar das negociações que eles fazem para vender os diamantes que eles vendem juntamente com os garimpeiros e quando acontece algum atrito entres os índios e os Garimpeiros acontece muitas mortes e eles falam que foi pra defender sua área, então como falar que eles são bobos, ingenuos ou tolos se tudo q eles falam são com o nosso diguinissimo livro da constituição.