segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O DIALOGISMO E A DIALÉTICA APLICADOS AO DISCURSO ANTITÉTICO: UM DIÁLOGO COM BAKHTIN E OUTROS TEÓRICOS


FONTE: http://lusoleituras.wordpress.com/tag/dialogismo/
Thonny Hawany[1]

Resumo: O presente artigo trata das relações do discurso e suas implicações ideológicas na edificação do poder socialmente constituído; de igual modo, apresenta a plurivalência e a plurilateralidade discursivas como bases primeiras do desencadeamento de discussões dialógicas e dialéticas aplicadas ao discurso antitético. O texto está fundamentado por mais de uma teoria, privilegiando, naturalmente, a dialética bakhtiniana na qual se ampara para evidenciar as contradições, os ditos e os não-ditos do discurso, que são benéficos ao homem quando utilizados para dirimir conflitos, mas infinitamente venéficos quando usados na manipulação de interesses tiranos em detrimento do melhoramento social, político, econômico e cultural do homem. Palavras-chave: Bakhtin, discurso, dialogismo, dialética, antítese.

Abstract: The present article deals with the relations of the speech and its ideological implications in the construction of the power socially consisting; equally, it presents the discursive plurivalency and the plurilaterality as first bases of the enchainment of dialogical discussions and dialectics applied to the antithetic speech. The whole text is based on more than a theory, privileging, of course, the bakhtinian dialectic under which if it supports to evidence the contradictions, said and the non-said ones of the speech, they are beneficial to the man, when used to nullify conflicts, but infinitely poisonous, when used in the manipulation of tyrannous interests in detriment to the social improvement, politician, economic and cultural of the man. Key-words: Bakhtin, discourse, dialogism, dialectics, antithesis.

1. Um diálogo de exposição dos princípios gerais

            O presente artigo não deverá constituir palco de discussão profunda sobre os elementos da teoria ou de reflexão imanente acerca da filosofia da linguagem, mas sim procurará apresentar dados que viabilizem a compreensão sobre o fazer instrumental da linguagem na formação das ideologias e consequentemente na sustentação do poder.
            Para avançarmos na discussão do assunto posto em evidência, necessário se faz uma breve explanação sobre cada um dos pontos que envolvem a tricotomia: linguagem, ideologia e poder. O assunto é por demais amplo, mas a nossa proposta de trabalho deverá condensá-lo ao máximo, tendo em vista a natureza concisa da atividade que nos predispusemos a apresentar para análise e compreensão imediata daqueles que, ainda incipientes, perscrutam a teoria em busca de respostas que elucidam a importância da linguagem, da ideologia e do poder nas relações entre indivíduo e sociedade.
            Se de um lado a linguagem é a representação máxima do pensamento por meio de signos que permitem a comunicação e a interação entre indivíduos, de outro a ideologia, como ciência das ideias, é o elemento revérbero dos signos linguísticos impregnados de significações ideológicas que redundam na terceira fração de nossa tricotomia, o poder – aqui entendido como produto da “manipulação” eficiente dos signos ideológicos.
            Assim sendo, com o intuito de elucidar a cumplicidade entre linguagem, ideologia e poder como elementos deflagradores de transformação e de sustentação da convivência social e de aclarar as relações dialógicas aplicadas ao discurso antitético, tomaremos mais adiante como exemplo alguns textos e fragmentos emprestados pela história e pela arte.

2. Um diálogo teórico

            A partir deste ponto, deverão ser elucidadas algumas questões que consideramos cruciais para o desenvolvimento da presente proposta. Buscaremos na teoria Bakhtiniana, especialmente no bojo da obra Marxismo e filosofia da linguagem[2], e em outros teóricos do mesmo nível o respaldo necessário para as afirmações e comparações que faremos miudamente em relação ao objeto apresentado.
            A Análise do Discurso (AD)[3] será, neste estudo, não o objeto ou parte dele, mas em alguns pontos o instrumento mensurador das relações intrínsecas e extrínsecas existentes entre a linguagem, a ideologia e o poder. Em se tratando de estudo da linguagem, deveremos centrar nossos esforços rumo à compreensão daquela que grita interesses coletivos e vai além das conveniências egoístas, servindo como ponto de partida para a formação da consciência coletiva[4], quando se impregna de conteúdo ideológico, conforme Bakhtin (2002).
De igual modo, não trataremos de ideologias individualistas nem de poderes que não sejam emanados do discurso político e literário com função social. Serão, portanto, uma bandeira deste trabalho as relações que a linguagem exerce na implementação e na transformação de velhas ideologia em novas, com o intuito de desencadear visões renovadoras em relação ao exercício do poder. Não deixaremos de apresentar também, para confronto, exemplos de velhos poderes que tentam ou tentaram renascer maquiados de jovens posturas sócio-políticas.
A linguagem, como instrumento valioso, exerce forte participação no fenômeno de implementação de novas ideologias e gera, desta maneira, a consciência coletiva, que será o ponto de articulação entre o povo e o poder. Conforme Hjelmslev (1975, p. 1),
a linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana.
            Quando Hjelmslev (1975, p. 2) disse que “a linguagem, como um sistema de signos, devia fornecer a chave do sistema conceitual e a da natureza psíquica do homem”, antecipava o que hoje já compreendemos com melhor clareza, graças às novas discussões fundamentadas na Análise do Discurso, com ênfase para o que, dentro do contexto semântico, afirma Frege (1978, p. 65): “[...] A representação é subjetiva: a representação de um homem não é a mesma de outro”.
            Se a linguagem é um sistema de signos, ela é naturalmente ideológica, pois conforme Bakhtin (2002, p. 32) “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo fora de si mesmo [...], tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”. Portanto, torna-se fácil perceber que a linguagem constitui-se importante matéria-prima na construção do tecido ideológico. Sem linguagem é impossível conceber a ideologia.
            Todas as vezes que a linguagem como instrumento de ideologia não convergiu para o intento ideológico comum à maioria dos indivíduos de um dado meio social, os objetivos e as metas propostos pelos audaciosos projetos rumo ao poder não foram, geralmente, alcançados, não perduraram por muito tempo ou não saíram dos planos iniciais. Em relação a isso, a História reserva-nos modelos de discursos e atitudes que não vingaram, a exemplo da ditadura militar no Brasil, que nasceu debilitada por não comportar a linguagem como instrumento de realização ideológica e comum. Neste caso, o signo se mostrou ineficiente frente ao seu objetivo inicial de reproduzir uma certa consciência coletiva.
Toda linguagem passa pelo crivo da observação social, e somente o discurso afinado consegue ultrapassar as barreiras do tempo, amealhar ideologias, formar a consciência coletiva e se solidificar como poder.
Sobre este critério de apreciação rigorosa da linguagem, fica evidente em Bakhtin (2002, p. 32) quando ele diz que “todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica”, e que é notório percebermos o contorno bem definido daquele discurso cujo “domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos”. Ainda para Bakhtin (2002) o signo não se aparta do ideológico: onde há ideologia há signo e vice-versa.
Em síntese, o signo sistematizado reflete a ideologia de um grupo socialmente organizado que, por sua vez, refrata essa mesma ideologia a outros grupos também refratores, ampliando, deste modo, o raio de ação do discurso, tornando-o instrumento de poder ideologicamente constituído. Ainda sobre o assunto, é prudente dizer que o signo ideológico, ao ser refletido, pode encontrar absorvência passiva e se firmar como discurso unilateral, a exemplo daqueles que alimentaram e alimentam rígidas ditaduras espalhadas pelo mundo; ou, de outro modo, pode embater-se com discursos sustentados por signos igualmente fortalecidos e que, por sua natureza consciente, são capazes de contra-argumentar, criando assim sobremaneira um discurso dialético.

3. Um diálogo de contradições: alguns recortes históricos

            Para falar das relações dialéticas entre os diversos discursos, buscaremos, ao longo da história, recortes que ilustram acontecimentos nascidos, quase sempre, com o intuito de contradizer outros já “consolidados como verdades indissolúveis”. Em algumas épocas, ideologias antitéticas chegaram a coexistir como verdades paralelas, causando, deste modo, o que podemos chamar, em tese, de angústia social. Para melhor explicitar tais relações, doravante passaremos a discutir alguns fatos que se contrapuseram ao longo dos tempos.
No período compreendido entre os séculos XIV e XVI, o Renascimento Cultural representou uma situação inteiramente distinta daquela à qual ele se opunha, o período medieval. Conforme Vicentino (1999), o discurso renascentista representava a ruptura com a Idade das Trevas, fazia emergir da escuridão medieval o despertar de ideias gloriosas nas letras, nas artes e nas ciências em geral.
O Renascimento é talvez o maior exemplo de antítese histórica, porque é a partir daí que são desencadeados outros fenômenos ideologicamente contraditórios, a exemplo da contraposição teocentrismo versus antropocentrismo. Enquanto o medievo sustentava a figura de Deus como o centro da razão, o homem renascentista se achava o próprio Deus e passava a ser ele mesmo o centro de todas as coisas.
Ainda sobre as contradições históricas, podemos mencionar a Reforma e a Contra-Reforma, desencadeadas com o surgimento de novas religiões cristãs que não concordavam com certos dogmas e acabaram por abalar a hegemonia teopolítica da Igreja Católica. No século XVIII, a Revolução Francesa levou Napoleão Bonaparte, “representante legítimo do povo”, ao poder em detrimento de Luiz XVI, ícone da nobreza francesa. No mesmo século, o Iluminismo caracterizado pela confiança no progresso e pelo incentivo à liberdade de pensamento, aflorou graças ao forte discurso de desafio às debilidades históricas, representadas pelos ideais tradicionais e totalitários.
            Os recortes históricos acima apresentados servem para nos mostrar que todo discurso é, além de contraditório, um veículo que sustenta ideologias indubitavelmente contraditórias. O discurso deve, portanto, ser compreendido sempre dentro do contexto histórico-social em que é proferido; num dado momento, pode ser absolutamente inovador e atual e, em outro, ser arcaico e ultrapassado, fato que o torna forte candidato ao ranking daqueles que precisam ser renovados. Se todo discurso é produzido por intermédio da manipulação perfeita de signos ideológicos e não de palavras em estado de dicionário, é importante perceber uma outra face do discurso que é servir, quase sempre, como instrumento em favor das classes dominantes. Conforme Bakhtin (2002, p. 47), “a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”. Esta questão da monovalência do discurso pode ter representado valioso mecanismo de afloramento, mas de sustentação frágil das ideologias de ditadores como Hitler, Mussolini e Stalin ao instaurarem seus regimes totalitários.
Ainda sobre essa questão, é possível também perceber que, quando a membrana que mascara o discurso se rompe, mostrando a fragilidade e a verdadeira intenção ideológica, quase sempre ardilosa do poder, ele se transforma, disfarçando-se nos poderes remunerativo, normativo e principalmente coercitivo, a exemplo do regime cubano, que há décadas perdeu a sua vitalidade discursiva e se sustenta pela coerção. Para Gramsci, (1968, p. 113), todo poder que quer se sustentar por tempo considerável deve observar que:
é preciso uma revolução cotidiana. A política tem que ser feita na sociedade, deve referir-se a todos os espaços do poder disponíveis. A luta política não pode limitar-se apenas a uma de pura força física ou de puro poder econômico. O Estado é força, coerção e dominação, mas a sociedade é o espaço do consenso, é o lugar onde os homens conflitam seus interesses através da persuasão. Não basta força, portanto. É preciso conquistar a consciência das pessoas. Quem quiser disputar o poder nessa sociedade [...] moderna, complexa, tem que ganhar a batalha das ideias. (Grifo nosso)
        Por último, vale ressaltar que o aspecto tênue do discurso é uma característica significativa da monovalência e da unilateralidade que o sustenta. Para os movimentos ideológicos que querem “ganhar a batalha das ideias”, o ideal é a plurivalência e a plurilateralidade discursivas, é o consenso. E sobre isso a história pós-moderna tem nos reservado muitos exemplos, que serão adiante tratados.

4. Um diálogo de plurivalências e plurilateralidades discursivas

            Falar de plurivalência e de plurilateralidade discursivas é, a priori, um desafio, tendo em vista ser ambas de natureza bastante complexa. O discurso plurivalente é aquele carregado de vários sentidos enquanto que o discurso plurilateral é o resultado da convergência de discursos menores ecoados de diversos segmentos da sociedade. Todo discurso plurilateral é, por natureza, plurivalente, tendo em vista a sua natureza social. Já o discurso plurivalente pode não ser necessariamente plurilateral, uma vez que pode emanar de um único lado, mesmo contendo em si muitos valores e significados. Todo discurso unilateral, em tese, pode ser plurivalente, mas a recíproca não é verdadeira, isto porque o discurso plurilateral não pode ser monovalente, haja vista nascer da diversidade de ideias e não da individualidade delas. O discurso provindo da consciência individual, quando se une aos discursos de outras consciências também individuais, ganha elementos que o torna diferente de sua base primária.
            O ideal é que a plurivalência e a plurilateralidade trabalhassem aliadas na implementação e sustentação de um poder capaz de se firmar pela força do discurso dialogado, pautado, a priori, pela discussão das ideias e, a posteriori, pela convergência dos ideais coletivos. A escolha do modelo discursivo nem sempre é atribuição daquele ou daqueles que tenciona(m) implementar mudanças e fortalecer poderes; a própria natureza do fenômeno aliada a fatores de caráter contextual, involuntariamente, responsabiliza-se, num dado momento, pela escolha do dialogismo como técnica de correlação de ideias na formação de um todo ideológico, ou, em outro momento, pela dialética como método em que as ideologias contraditórias declaram contenda e digladiam-se com a finalidade de se complementarem para dar origem a uma terceira ideologia, em que prevalece a soma parcial das anteriores, geralmente predominando a que possuir maior substância coercitiva sustentada pelo discurso. Segundo Bakhtin (2002, p. 136):
Os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integram à existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles, submetendo-nos a uma reavaliação, fazendo-nos mudar no de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética reflete-se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la.
            Ainda em conformidade com Bakhtin (2002), quando a dialética se coloca como instrumento da evolução, a sociedade em transformação abre espaço para integrar o indivíduo que igualmente se transforma e, neste processo, nada permanece estável sem que seja dilacerado por suas próprias contradições, a fim de volver-se revigorada, mas com equilíbrio e identidade efêmeras.
            Tanto a dialética, quanto o dialogismo, como instrumentos da linguagem (discurso) são de suma importância para a implementação de ideologias coletivas e consequentemente para a evolução sócio-histórica do homem no que concerne à ininterrupta transformação de estados de poder. Todo poder se sustenta pela consciência coletiva nascida a partir do discurso ideológico. Todo poder é vivo e, como tudo o que vive, evolui, transforma-se dialética e dialogicamente.
            No caminho das transformações por que passam todos os poderes, a dialética e o dialogismo, como fenômenos determinantes da qualidade do discurso, estão intimamente relacionados com os aspectos sincrônicos e diacrônicos da linguística. O dialogismo está para a sincronia, assim como a dialética está para a diacronia. Conforme Bakhtin (2002, p. 87):
a linguística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um sistema, tal como eles são percebidos pela consciência coletiva. A linguística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência, e que se substituem uns aos outros, sem formar sistema entre si.
Por fim, as afirmações supra-expostas vêm para reforçar a nossa ideia de plurivalência e plurilateralidade na formação de um discurso ideologicamente constituído, rumo à sustentação de um poder fortemente constituído de ideologias que se firmaram como consciência coletiva. Ainda em tempo, essa questão levantada aqui a respeito da plurivalência e da plurilateralidade do discurso merece ser melhor estudada tendo em vista a sua natureza bastante ampla e o seu caráter, a princípio, original.

5. Um diálogo de (contra)ditos

A partir deste ponto, trataremos do discurso e do antidiscurso na construção do poder e de outras atitudes de cunho social. Para exemplificar essa relação dialética evidente, tomaremos como primeiro elemento de ilustração o embate ideológico entre os EUA e aliados contra o terrorismo islâmico. De um lado, há por parte dos aliados a sustentação de um discurso voltado para a celebração da paz com a derrocada do terrorismo; todavia, a evidência de discursos aparentemente marginais ou secundários tem se aclarado e deixa perceptível outros interesses, principalmente os de ordem econômica. Há, deste modo, um discurso de aparências e outro, o verdadeiro, que tenciona o controle de nações detentoras das maiores reservas de petróleo do mundo, “coincidentemente” também minadas por ideologias que pregam o terror como o único caminho para a liberdade. De outro lado, uma parcela considerável dos povos mulçumanos combate com a finalidade de implementar e sustentar o seu obsessivo poder econômico e teocêntrico – lógico que a maioria não sabe ou não tem consciência ainda da real intenção econômica por trás do discurso teocrático e morrem em nome de Deus e a mando do “profeta”. Nesta ilustração, apoiados em Foucault citado por Demo (2002), queremos chamar a atenção para um fato que consideramos importante: trata-se da manifestação visível de uma das faces mais típicas da ideologia que é dissimular, mascarar e esconder, na tentativa de assegurar, justificar e “fortalecer” interesses. Fundamentados na observação atenciosa, notamos que os dois discursos funcionam ora como discurso, ora como anti-discurso. São discursos para a sua base de sustentação e anti-discursos em relação ao discurso de outrem. Vale ressaltar também que há mais de um discurso em cada discurso, ou seja, o que podemos chamar de discurso aparente e discurso real. Num único discurso é possível dizer mais que o necessário, pode-se afirmar e negar ao mesmo tempo; bem como dizer desdizendo o que disse. Conforme Demo (2002, p. 38), “o sorriso irônico comunica, através do sorriso, o contrário. O humor negro comunica a tragédia como diversão. Há silêncios ensurdecedores, ausências gritantes, desaparecimentos estratégicos”.
Tomando como elemento de análise a teoria polifônica de Bakhtin (1997), apresentada em sua obra problemas da poética de Dostoiévski; no recorte supracitado, é notória a presença de discursos marginais que cortam o discurso central de um lado a outro na tentativa de se mostrar e de se afirmar como verdade, ainda que os propósitos não sejam assim tão éticos e morais.
Tendo em vista ser a linguagem (discurso), a ideologia e o poder a espinha dorsal deste artigo, tomaremos alguns textos como corpus para análise, como anunciamos no início, a fim de exemplificar essa tal relação que o signo exerce sobre a ideologia no processo de implementação de poderes sócio-constituídos. Nenhum poder é totalmente isento do discurso ideológico, seja ele autoritário, totalitário ou democrático; o que o diferencia dos demais é a maneira de utilização do discurso como ferramenta de sustentação de suas bases ideológicas, frente à manipulação da consciência coletiva. De igual modo, é possível também afirmar que nenhum outro interesse humano está igualmente isento do discurso polifonicamente intencional. E para mostrar esta intencionalidade discursiva, tomaremos como o primeiro corpus de análise, a terceira parte da carta de Maquiavel (1999, p.19), quando dedica a obra “O Príncipe” ao Magnífico Lourenço de Médici.

Receba, então, Vossa Magnificência, este pequeno presente, com a mesma intenção com que eu o envio. Se esta obra for diligentemente considerada e lida, vossa Magnificência conhecerá meu estremo desejo de que atinja a grandeza que o destino e suas demais qualidades lhe asseguram. E, se Vossa Magnificência, do ápice de sua plenitude volver, alguma vez, os olhos para baixo, perceberá quão imerecidamente suportei grande e contínua maldade do destino.

            Maquiavel, no seu discurso, na passagem inicial em que eloquentemente dirige-se a Lourenço com certo ar de igualdade representado nas palavras receba, então, Vossa Magnificência, este pequeno presente, com a mesma intenção com que eu o envio”, mostra a intencionalidade firme de imprimir sua vontade em relação à vontade de Lourenço. Mais adiante, deixa claro que não tem a intenção de dar o presente sem querer algo em troca. Não diz o que quer nem como quer, mas torna isso evidente quando solicita que Lourenço de Médici, lá da altura de onde está, olhe para baixo e o reconheça como aquele que, depois de ter sofrido as agruras da vida, merece ser recompensado.
            Para sustentar interesses não bastam discursos vazios, o que basta são os discursos forrados de intencionalidade discursiva, e isto é instrumento de especialistas e não de leigos, afora prerrogativas obtidas por uns poucos esforçados.
            Como discurso de contraditos, entendemos todo aquele carregado pelo fenômeno da dialética. O discurso pode simplesmente dizer algo, pode se contradizer; mas a sua principal função é a de estar em desacordo com outros discursos, a fim de se firmar como discurso privilegiado socialmente. Mas isso só é possível quando o discurso nasce da interação social dos seus elementos, entre si e com outros elementos.
            É importante não confundir o discurso das contradições com a teoria bakhtiniana que trata do dito e do não-dito. O que estamos chamando de (contra)ditos aqui é a força dialética do discurso e não o discurso não-dito, subentendido em outro discurso. O discurso de contradição é, geralmente, carregado de não-ditos. E isto é que o faz sutil e contundente ao agir em contraposição a outro discurso.
            Conforme Bakhtin citado por Freitas (1999, p. 145):

A entonação sempre está na fronteira do verbal com o não verbal, do dito com o não dito. Na entonação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é na entonação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor ou interlocutores: a entonação é social por excelência. Ela é especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante.

            Freitas (1999, p. 145), quando interpreta Bakhtin, afirma que “não é só a entonação, mas toda a estrutura formal da fala que depende, em grau significativo, da relação do enunciado com o conjunto de valores presumidos do meio social onde ocorre o discurso”.
            Todo discurso é produzido, indubitavelmente, a partir das relações que possui o interlocutor com o meio em que está inserido, levando em conta, naturalmente, os fatores tempo, espaço, qualidade intelectual do(s) interlocutor(es) etc. Os ditos e os (contra)ditos de um discurso, bem como os ditos e os não-ditos podem não produzir os efeitos desejados se um ou mais dos elementos envolvidos não estiverem devidamente harmônicos entre si.
            A fim de ilustrar o discurso de contradição, encontramos excelentes exemplos nos poemas sacros do poeta barroco Gregório de Matos Guerra que, ao discordar da política da época, escrevia contrapondo-se àquelas atitudes. Gregório de Matos, ao ser degredado para a África, em virtude de ter escrito alguns textos que ‘afrontavam’ a burguesia portuguesa no Brasil, escreveu alguns versos de despedida de onde retiramos o fragmento transcrito abaixo.

No Brasil a fidalguia
no bom sangue nunca está,
nem no bom procedimento,
pois logo em que pode estar?
Consiste em muito dinheiro,
e consiste em o guardar,
cada um o guarde bem,
para ter que gastar mal.[5]

            Não é difícil encontrar os (contra)ditos dentro do discurso de Gregório de Matos. Ao usar a Literatura como um instrumento contundente de denúncia, ele contradiz a burguesia da época pela falta de gentileza e pelos modos como os fidalgos tratavam a riqueza, ora ostentando-a, ora com avareza. Para Bakhtin citado por Freitas (1999, p. 147), “O poeta, afinal, seleciona palavras não do dicionário, mas do contexto da vida onde as palavras foram embebidas e se impregnaram de julgamento de valor”. Percebe-se daí que todo discurso, a começar pelo poético, é uma exposição dos acontecimentos de um dado contexto, compreendendo os fatores ideológicos organizados segundo as ordenas cronológicas e espaciais. Vale dizer que os (contra)ditos são subjetivos e só podem ser percebido pela inter-relação dos elementos discursivos.
            O discurso, além de contradizer atitudes, pode incitar contra elas, alertar ou “avisar” que algo não está bem e “desse jeito não dá mais”, conforme afirmou, recentemente, o compositor Geraldo Vandré em entrevista para o site Clique Music[6], quando falou do discurso impresso no teor de suas composição. Para ilustrar mais esta virtude do discurso, doravante trabalharemos a música “Para não dizer que não falei das flores”, tida aqui como corpus de enorme natureza polifônica, a começar pelo próprio título que apresenta a intenção discursiva de tornar evidente o não-dito, ou seja, além de falar de todas as coisas que disse, também se falou de flores.

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem, vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

            Na primeira estrofe, o emissor do discurso chama o interlocutor para uma reflexão acerca do conteúdo da canção, convoca a todos para a luta, que, mais adiante, torna-se incontestável, não importa se estudante, homens da cidade ou do campo, se trabalhador ou não; todos são chamados, porque “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Essa canção foi escrita no auge da Ditadura Militar no Brasil, vários foram os movimentos que se opuseram a esse regime autoritarista, mas nenhum foi tão representativo quanto o poema “Caminhado” de Vandré, embora ele tenha negado sempre o verdadeiro discurso deste e de outros escritos naquela época.
 
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo canhão
 
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão
 

           Nos versos das estrofes dois e três, o discurso personifica a angústia social causada pelo regime militar, quando fala da fome e da incerteza causadas pelo golpe. A partir desse ponto a palavra flor passa a ser um signo ideológico fortemente carregado de sentidos e de intencionalidade discursiva, contrapondo-se ao outro discurso, metaforicamente, caracterizado pela expressão: “antiga lição”, explicitada no final do terceiro verso da terceira estrofe.

 
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
 
               Na quarta estrofe, todos são novamente convocados para a luta contra a ideologia 
dominante e isto se confirma quando nas palavras: “somos todos soldados, armados ou não”.
 
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição

            Na última estrofe, há a consolidação do confronto entre os dois discursos, o velho e o novo. E chega a sugerir o embate físico entre eles, quando, por meio da alegoria “as flores no chão” sugere corpos defuntos caídos depois de uma luta armada. Ainda nos primeiros versos desta mesma estrofe, os amores representam os interesses bairristas, patrióticos, flores as pessoas, certeza a convicção, e a expressão “a história na mão” denota a vitória das flores sobre a “antiga lição”. Essa intencionalidade é reforçada no último verso, quando “a nova lição” passa a ser ensinada em lugar daquela suplantada pela nova ideologia.
            Geraldo Vandré pode negar até morrer a verdadeira intenção que o levou a escrever “Caminhando”, mas o que ninguém, em sã consciência, pode negar é a relação que os signos ideológicos empregados intencionalmente ou não na letra da música tiveram com o momento de angústia social causado pela Ditadura Militar no Brasil.
            Acreditar que o homem um dia terá domínio absoluto sobre a linguagem é negar a evolução de ambos. Mas acreditar na aceleração urgente rumo ao domínio do discurso expresso pelo signo ideológico, a fim de construir uma consciência coletiva, é acreditar que num futuro não muito distante, o homem possa reger a sociedade por meio de atitudes que não vilipendiem os direitos “sagrados” de si e de outrem. E esta deve ser a razão porque se discutem tanto as relações entre linguagem, ideologia e poder. O signo é poderoso em si e, como o hidrogênio em contato com o ar, quando interage com o contexto, EXPLODE.

6. Um último diálogo

            A linguagem é um dos mais importantes, se não for o mais importante, dos instrumentos de interação social entre os povos. Ao longo de seu desenvolvimento, recebeu várias influências de outras ciências do conhecimento humano, tais como a Sociologia, a Filosofia, a Psicologia e a Linguística. O seu principal objetivo é veicular e consolidar a cultura humana, dando-lhe um caráter de universalidade.
            É por meio da linguagem que as ideologias são atritadas a fim de gerar a consciência coletiva e é por intermédio de tal consciência que se chega à consolidação de atitudes nobremente sociais como o poder e suas relações benéficas de igualdade, fraternidade e, acima de tudo, liberdade na acepção mais ampla da palavra.
            Que a plurivalência e a plurilateralidade dos discursos possam se fermentar nas técnicas dialética e dialógicas, desencadeando a práxis rumo a um mundo melhor para se viver, fazer, ser e, sobretudo, conviver.
            Em face ao exposto, as contradições, os ditos e os não-ditos do discurso são benéficos ao homem, quando utilizados para dirimir conflitos, mas podem ser infinitamente venéficos, quando usados pelos ardilosos na manipulação de interesses, a fim de sustentar déspotas à frente de poderes tiranos que nada contribuem para o melhoramento social, político, econômico e cultural do homem.
              
Referências:

BAKHTIN, Mikhail. Discourse in life and discourse in art. In: M. Bakhtin, Freudianism. A marxist critique. New York: Academic Press, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9.ed. São Paulo: HUCITEC – ANNABLUME, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
DURKHEIN Emile. De la division del trabajo social. Buenos Aires, Schapire, 1973.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, apud DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2002
FREGE, Gottlob. Sobre o sentido e a referência. In Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultirx, 1978.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vigotsky & Bakhtin – psicologia e educação: um intertexto. 4.ed. São Paulo: Ática, 1999.
GRAMSCI, Antônio. Maquiavel – a política e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. A análise do discurso: conceitos e aplicações. ALFA, São Paulo, v. 39, p. 13-21, 1995.
HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975.
MAQUIAVEL, Niccolò, O príncipe: com as notas de Napoleão Bonaparte; trad. J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
VICENTINO, Cláudio. História geral. 8.ed. São Paulo: Scipione, 1999.

Observação. Este texto foi originalmente publicado na revista Praxis, vol. 2, ano 2003 e na revista Contrapontos, vol. 4, série 3, ano 2004.





[1] O autor é Licenciado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia, bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Cacoal; especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior e em Língua Portuguesa pelas Faculdades Integradas de Cacoal e em Design Instrucional pelo Centro Universitário CENAC/SP; é mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

[2]  Obra publicada na Rússia em 1929 e assinada por Volochinov, mais tarde atribuída a M. Bakhtin.
[3] Ciência constituída nos anos 60 e que tem como principal objeto, segundo Gregolin (1995), “o estudo da discursivização”.
[4] Conforme Durkheim (1973), por consciência coletiva entende-se o resultado da soma de valores sociais e sentimentos comuns a uma parte considerável da comunidade, garantindo, desta maneira, a união dos indivíduos de uma sociedade e dos valores perpassados através das gerações.
[5]. Gregório de Matos. In Gregório de Matos, São Paulo: Abril – (Literatura Comparada).
[6] . http://www.cliquemusic.com.br

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A TEORIA DO CONHECIMENTO DE PLATÃO COMPARADA À TEORIA DO SIGNO LINGUÍSTICO: UMA PROPOSTA DE LEITURA

Por Thonny Hawany [1]

RESUMO: O presente trabalho visa apresentar uma análise da Teoria do Conhecimento de Platão, procurando relacioná-la com a Teoria do Signo Linguístico, a fim de mostrar as semelhanças existentes entre elas.

PALAVRAS CHAVES: Platão, Saussure, teoria, conhecimento, signo

ABSTRACT: The present work aims to present an analysis of the Theory of the Knowledge by Platão, viewing to relate it with the Linguistic sign theory, in order to show the existing similarities among them.

KEY-WORDS: Plato, Saussure, theory, knowledge, sign

Introdução:

            A teoria do conhecimento de Platão está organizada de modo que possibilita uma analogia com a teoria do signo linguístico. Depois de considerados os elementos constitutivos de ambas, as relações que possuem com o homem e a maneira particular desse ver as coisas tangíveis e intangíveis do mundo real e irreal, é possível afirmar, a priori, que elas apresentam constituintes irrefutavelmente semelhantes, podendo, em alguns casos, dizer que são iguais .
            Qualquer que seja a profundidade de nossa observação, a teoria de Platão ainda será objeto de muitos outros estudos de análise comparativa, não só com as teorias que tratam do signo linguístico, mas também com outras que fundamentam as ciências diversas, tendo em vista a sua natureza bastante universal.  Considerando a inatingibilidade do conhecimento científico total e profundo de uma questão cientifica dessa natureza, ater-nos-emos aos pontos de igualdade e de aparente igualdade entre as teorias supramencionadas.

            Para melhor compreensão de nosso objeto de estudo, o que chamamos de natureza universal, quando nos referimos à teoria de Platão, é o seu caráter sígnico, haja vista apresentar na sua estrutura os elementos significativos da linguagem humana (nome, definição e imagem) que são imprescindíveis na relação homem-natureza, quer seja física, quer seja metafísica. Para reforçar a ideia, afirmamos que o signo é o elemento universal de codificação e decodificação das ciências de modo geral, ou seja, é possível considerá-lo como a chave cósmica do conhecimento .
            Por fim, ao analisarmos possíveis convergências entre as duas teorias e, se, ao final, chegarmos ao que pretendemos, ou seja, à comprovação de que a teoria do signo – ao menos sua idéia primária – nasceu a partir da teoria do conhecimento de Platão, teremos construído uma enorme ponte entre o século XX d.C. e o século V a.C. E isso, com certeza, levar-nos-á a refletir com a finalidade de rediscutir alguns conceitos já consolidados em relação à teoria do signo.

2. Quem foi e o que pensou Platão?

Antes de tratarmos de sua teoria, precisamos conhecer um pouco a respeito  Platão, conforme Chauí (2002, p. 222), “a não ser Aristóteles e Carnéades (para mencionarmos os discípulos mais próximos e conhecidos), ninguém nunca conheceu a totalidade do pensamento platônico?”
Para dizer quem foi Platão é necessário mergulhar profundamente numa análise bastante complexa e duradoura. Mesmo assim, não é certo que alguém consiga lograr êxito na empreita.  Se não há a totalidade platônica nos filósofos mais próximos dele, seus discípulos acima mencionados, também não haverá de ser encontrada em nenhuma análise, por mais confiável que ela seja. Muitos refletiram sobre Platão. Há muitos “Platões” que, conforme Chauí (2002), pode-se considerar na tentativa de compreender mesmo que a menor das partes que compõe o todo chamado Platão. Pode-se ler o Platão da imortalidade para os cristãos da antiguidade, o Platão dos românticos do século XIII, o Platão de Jaeger, de Goldschmidt, de Hegel, de Strauss, de Nietzsche e de Heidegger.
Por fim, tomando como base o que considera o próprio Platão apud Chauí (2002, p. 218-219) sobre a natureza de suas preocupações, esta árdua tarefa de entendê-lo fica muito mais difícil ainda.

Uma coisa posso afirmar com força, concernente a todos os que escreveram ou escreverão, sobre o que é o objeto de minhas preocupações e que se declaram competentes sobre isso, seja porque ouviram falar de mim por outros, seja porque pretendem tê-lo descoberto por si mesmos: essa gente nada pode compreender sobre o assunto. Sobre isso [o objeto de minhas preocupações filosóficas], não tenho nem terei jamais uma obra escrita [...].  Em contraposição, julguei que uma versão dessas preocupações deveria ser posta por escrito de um modo que a maioria pudesse ler e entender e isso seria a mais bela obra de minha vida: confiar ao escrito o que é a maior utilidade para os humanos e trazer à luz a verdadeira natureza das coisas, para que todos possam vê-la.

Como o objeto desta reflexão não precisa, a priori, entender Platão na sua totalidade, ficaremos com o Platão que deixou registrada a sua preocupação com o conhecimento humano na sua totalidade, que falou de dialética, de linguagem, de política, de violência e de injustiça.
Por último, devemos considerar o Platão filho de Aristo e de Perictona de Atenas, nascido em 427 a.C. e que, conforme Chauí (2002, p 212), “por parte de mãe, descendia de Sólon e, por parte de pai, do rei Codro, fundador de Atenas.”

3. A teoria do conhecimento de Platão

Segundo Chauí (2002), a teoria do conhecimento de Platão teve como base a separação entre o sensível e o inteligível, bem como nas relações dialéticas como caminho para ir do visível para o invisível, ou seja do sensível para o inteligível.
A teoria do conhecimento de Platão está organizada de acordo com os seguintes elementos, por ele chamados de modos: o primeiro é o nome, o segundo é a definição, o terceiro é a imagem, o quarto é o conhecimento e o quinto é o objeto ou a coisa em si.
Para melhor compreender a teoria do conhecimento, tomemos o exemplo de Platão interpretado em Chauí (2002):

(...) Tomemos um objeto chamado “circulo”. Seu nome é esta palavra que acaba de ser escrita ou pronunciada. A seguir, vem sua definição composta de substantivos, adjetivos e verbos: “circulo é o objeto cujas extremidades, em todas as direções, são equidistantes de seu centro”. Esse objeto pode ser representando, como faz a ciências da geometria: pode ser traçado, pode ser construído em algum material e pode ser apagado ou destruído, coisa que, diz Platão, não acontece com o circulo real, pois este não se confunde com nem com o nome, nem com a definição, nem com a figura. (...) O conhecimento, quarto modo, não é nem o círculo real (o próprio círculo em si mesmo), nem são os três modos de conhecimento ( nome, definição e imagem), mas a compreensão que nossa alma tem da ligação entre eles – O quarto modo é o que passa em nossa mente quando o nome, a definição e a imagem são produzidos. (...) 5º modo: A coisa em si mesma: o circulo existe em si mesmo, independente de nossa alma...

            O exposto supra-apresentado não constitui a totalidade da teoria de Platão, mas constitui os elementos fundamentais dela, os quais nos interessa em particular para a analogia que pretendemos neste trabalho investigativo.
Sobre a sua teoria, Platão não explica, segundo Chauí (2002), claramente as ralações existentes entre os modos de conhecimento, nem se há uma hierarquia entre eles, detendo-se apenas ao que ele chama de “fricção” entre os modos de conhecer.
Por último, sem nos estender muito, tendo em vista que voltaremos ao assunto logo mais adiante, queremos deixar aqui clara a semelhança inconfundível entre a teoria do conhecimento Platão e a teoria do signo lingüístico. Veja:
 
 Circulo è conceito è conhecimento è a coisa em si
  

4. A Dicotomia sígnica de Saussure

Qualquer coisa que possa representar outra coisa, qualquer som, palavra  que remeta significado para fora de si mesmo e que seja capaz de significar algo é signo.

Para Saussure (2001, p. 80-1), em sua obra Curso de Lingüística Geral, “o signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces”, é ainda “a combinação do conceito e da imagem acústica”.
Quando olhamos para um desenho, quando ouvimos uma palavra ou quando nos deparamos com as luzes verde, amarela e vermelha do semáforo, estamos diante de um signo que comporta psiquicamente duas faces. No caso do semáforo, a cor verde é um indicativo que o caminho está aberto, e que é possível seguir sem qualquer problema. Se de um lado, a luz verde do semáforo é a representação física do signo, ou seja, sua forma visual, sua imagem; de outro, a imagem permissiva que se forma a partir do contato visual com a luz verde do semáforo é a parte do signo a que chamamos de conceito.
            A fim de explicitar com maior clareza a sua dicotomia, Saussure resolveu substituir as palavras conceito e imagem, que já estabeleciam uma relação de oposição por: significante e significado, sendo esta o conceito e aquela a imagem.
            Por fim, podemos dizer que o significante é a representação física do signo, de forma sonora e/ou imagética. Já significado é o conceito que nos permite  formar uma imagem psíquica.

5. Paralelos e comparações

Depois de apresentada a teoria do signo de Saussure, é possível retomar agora a teoria do conhecimento de Platão analisando-a e comparando os seus elementos com aqueles apresentados na dicotomia do signo linguístico.
No gráfico abaixo, disporemos os elementos das duas teorias para facilitar a visualização daquilo que estamos procurando estabelecer relações desde o início.

Platão
Saussure
Teoria do conhecimento
Signo
  • Nome / imagem
  • definição
  • conhecimento
  • A coisa em si
  • Significante
  • Significado


             Se tomarmos agora o exemplo do círculo apresentado no tópico 2, veremos que é possível aplicar a mesma ideia usando qualquer uma das duas teorias aqui em discussão.
Para Platão, o nome “circulo” pode ser representado por uma imagem circular e definida como uma  figura geométrica cujas extremidades são equidistantes do centro.
            Para Saussure, tanto o nome “círculo”, quanto a imagem “circulo” configuram o que ele chama de significante, já aquilo que Platão chama de definição, Saussure denomina de significante, ou seja, conceito.
            Sobre o quarto modo de conhecimento, queremos mencionar ainda que Platão deixa evidente a ideia de arbitrariedade quando apresenta o conhecimento  como o modo de entendimento das relações entre os três primeiros modos (nome, definição e imagem). Em Chauí (2002, p. 246), ela diz que:

4º modo: conhecimento: o nome poderia ser outro (é uma convenção); a imagem traçada pode ser apagada, deformada e é uma mistura de linhas retas e curvas. O circulo em si não se identifica com o nome convencional nem com uma figura traçada que pode desaparecer ou ser deformada e na qual dois opostos (curvo e reto) estão misturados, pois o circulo real ou tal como ele é em si mesmo não passa por mudanças como acontece com a figura ou com o nome (que poderia ser outro)... (Grifo nosso).

            Em relação ao quinto modo, conforme Chauí (2002, p 247), Platão não apresentou nenhum exemplo, mas deixou clara a sua relação com o quarto modo, ou seja: “A função do quarto modo de conhecimento é preparar-nos para alcançar o objeto real, a essência inteligível de alguma coisa”.  Ela ainda acrescenta que:

 “... como a linguagem e as figuras são poucos adequadas para alcançar o objeto real, porque estão muito próximas da sensação e da percepção, isto é, das operações corporais, só chegamos ao quinto elemento, ou ao conhecimento verdadeiro do objeto, por uma espécie de “fricção”, uma luz que nos faz ver a pura ideia da coisa.” (CHAUÍ, 2002, p. 246).

            Quando Marilena Chauí (2002), diz que é por meio do quinto elemento que podemos conhecer a essência exata e pura da coisa referida nos modos de conhecimento (nome, definição, imagem), percebemos que aí está a primeira ideia que nos leva a crer que este modo refere-se à exata consciência do significado do signo, a significação, e isto não está em Saussure, mas em Hjelmslev (1975, p. 50), quando diz que:

Considerado isoladamente, signo algum tem significação. Toda significação de signo nasce de um contexto, quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, [...]. É necessário, assim abster-se de acreditar que um substantivo está mais carregado de sentido do que uma preposição, ou que uma palavra está mais carregada de significação do que um sufixo de derivação ou uma terminação flexional.

Depois das evidentes relações existentes entre a teoria do conhecimento de Platão e a teoria do signo linguístico, é possível que esta tenha sido ensaiada, a priori, por Platão e sistematizada, a posteriori, por Saussure, como ocorreu com a teoria atômica de Dalton que foi primeiramente ensaiada pelos filósofos atomistas Leocipo e Demétrio.

6. Considerações finais

            Todo conhecimento, quando é verdadeiro, a exemplo da teoria do conhecimento de Platão, independente de sua longevidade no tempo, pode contribuir para a reflexão acerca do homem e suas relações tangíveis e intangíveis com as coisas e com o meio em que vive, quer seja real (objetivo), quer seja ficcional (subjetivo).
Do mesmo modo que Platão pode ter influenciado Saussure ao postular a teoria do signo linguístico, ele mesmo, ou qualquer outro grande filósofo da antiguidade pode ser retomado com o intuito de encontrar embasamento teórico para as indagações que fervilham e permeiam as academias de ciência, a exemplo do que acabamos de fazer ao analisar duas teorias tão distantes do ponto de vista temporal.
            Por último, queremos dizer que a teoria do conhecimento de Platão, por sua natureza atual, mesmo elaborada há mais de 23 séculos, deve ser elemento de embasamento em qualquer estudo que trate de linguagem, signos e elementos sígnicos.

7. Referências:

HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2002.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 30. ed. São Paulo: Cultrix. 2001.






[1] . O autor é Licenciado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caetité – Campus VI da Universidade do Estado da Bahia (UNEB-1994); é bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Cacoal (UNESC-2011); é especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior e em Língua Portuguesa pelas Faculdades Integradas de Cacoal – UNESC; é mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS-2007).

Observação: Este texto foi originalmente publicado na Revista Científica da UNESC - Ano 7 - nº 10 - outubro de 2009.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Por Thonny Hawany

Fonte: http://www.sbcoaching.com.br/blog/times-de-alto-desempenho/
como-avaliar-desempenho-colaboradores/
A avaliação está presente em tudo o que fazemos. Avaliamos as roupas que vestimos; o que vamos, ou não, comer no almoço; avaliamos as outras pessoas e como elas se comportam diante da sociedade. Tudo, ou quase tudo em nossa vida, é sempre tema para uma avaliação.

Nós nos doamos às avaliações do cotidiano sem medo, sem pudor, sem restrições; no entanto, quando o negócio é avaliação da aprendizagem, difícil é encontrar alguém que se sinta à vontade para avaliar e, muito menos, para ser avaliado. Avaliação é um tabu a ser vencido e desmistificado pela educação contemporânea.

Segundo Oliveira (2014), para avaliar é preciso conhecer. Avaliar aquilo que não conhece é, no mínimo, uma atitude arbitrária. O contexto a ser avaliado deve, obrigatoriamente, ser do conhecimento do avaliador. Na proposição de um curso a distância, o DI deve, antes de escolher e propor os instrumentos e modelos de avaliação, conhecer o contexto e a atmosfera do curso: quem são os alunos, quais são seus anseios e expectativas com relação ao curso, quais são as mídias escolhidas e, principalmente, como se dará a interatividade entre os atores do curso.

A avaliação não pode ser um instrumento aleatório que parte do nada para o nada, é preciso que o avaliador tenha traçado, inicialmente, alguns objetivos bem definidos a fim de garantir que os seus instrumentos de avaliação sejam eficientes ao coletar os dados que demonstrarão o progresso do aluno e desenrolar do próprio curso (Oliveira, 2014).

“Para avaliar, é preciso entender a diferença entre aprender e memorizar” (Oliveira, p. 6). Eu diria que é preciso entender também a diferença entre aprender, memorizar e apreender. Quem aprende, aprende da forma como o outro ensinou, quem memoriza não chega a tomar para si o que é do outro, internaliza, superficialmente, alguns conhecimentos que, certamente, serão esquecidos quando não mais precisar; mas quem apreende toma para si, de modo crítico, original e criativo, o discurso do outro como se fosse seu. Internaliza o conhecimento e dele tira proveito, cria, inova, transforma.

O estudante presencial ou a distância não pode ser considerado como uma folha de papel em branco. Quando ele chega à escola ou ao ambiente virtual de aprendizagem, traz, do meio em que vive, um conhecimento preexistente que deve ser considerado pelo professor no seu processo de avaliação.

Como o nosso objetivo aqui é falar de avaliação com ênfase para a educação a distância, centraremos o nosso discurso nas práticas sugeridas pela “Avaliação e Validação de Projetos”. A avaliação deve ser um mecanismo que transcenda os seus próprios instrumentos. Com isso, quero dizer que uma única prova escrita não pode nem deve ser considerada como uma avaliação que represente a totalidade do conhecimento de alguém. Ela pode e deve ser parte do processo e não o todo.

Como se viu, ao estudar a supramencionada disciplina, a avaliação pode ser diagnótica: aquela que sonda os conhecimentos prévios do indivíduo; somativa, pouco ampla e, que segundo Oliveira (2014, p. 9), tem como “finalidade básica aferir o domínio alcançado sobre determinado assunto ao final de um período qualquer”. A avaliação somativa nem sempre apresenta o conhecimento apreendido pelo aluno. Embora seja uma ferramenta falha e controvertida, ela ainda tem a sua importância dentro dos modelos vigentes de educação no Brasil. Sobre a avaliação formativa, a meu ver, a mais completa, se comparada às anteriores, é o modelo mais eficiente e que representa com certa fidelidade o conhecimento apreendido por alguém, tendo em vista que planejamento ensino, aprendizagem e avaliação caminham juntos num processo de idas e vindas, a fim de corrigir as lacunas deixadas no ato de planejamento e os pontos que foram falhos na execução do curso, disciplina ou conteúdo proposto pelo designer instrucional.

O uso de todos os modelos de avaliação e processos avaliativos culminam na avaliação multidimencional trabalhada, amplamente, na última aula da disciplina “Avaliação e Validação de Projetos”. A avaliação tem que apontar para todos os lados e mensurar tudo o quanto for possível. Segundo Oliveira (2014, 7),

a avaliação que olha apenas o alcance dos resultados e que não se preocupa em analisar as condições individuais, as várias trajetórias de quem aprende, os vários momentos, as múltiplas dimensões do saber e as inúmeras articulações entre os objetos de conhecimento, corre o riso de produzir resultados muito parciais e fragmentados.

 Outro aspecto que não pode deixar de ser mencionado nesta resenha é o fato de a avaliação dever estar sempre ligada a uma teoria da aprendizagem. Um designer instrucional (DI) deve, antes de elaborar os objetivos e escolher a forma de avaliação de um determinado curso, determinar qual teoria de aprendizagem norteará o ensino e a aprendizagem pretendidos por ele.

As principais teorias estudadas na disciplina em análise resumiram-se ao behaviorimo (aprendizagem por meio da repetição), o cognitivismo (aprendizagem significativa de Ausbel) e o sociointeracionismo de Vigotski (aprendizagem por intermédio da interação entre indivíduo/indivíduo e indivíduo/meio), com a qual eu me identifico sobremaneira.

Cada teoria indica formas diferentes para se construir o planejamento de um curso. A escolha de competências e habilidades, dos conteúdos, dos objetivos, da metodologia, das técnicas e recursos, bem como dos modelos e formas de avaliação devem seguir o pensamento preestabelecido na teoria escolhida pelo DI. A escolha de uma teoria-norte assegurada por instrumentos divergentes pode não produzir os efeitos desejados no planejamento.

No tocante ao planejamento e a avaliação, entendo que esses dois aspectos andam atrelados do memento em que o curso foi pensado até a sua finalização. O planejamento deve ser o mais aberto possível a fim de permitir mudanças sugeridas ao final de etapas de avaliação. Por isso é que a avaliação tem que ser um processo e não uma atividade final. Deve-se avaliar para saber o que fazer, como fazer, para quem fazer, onde fazer, quando fazer, quanto fazer e, acima de tudo para (re)fazer.

Planejar avaliando é o segredo do sucesso de uma disciplina ou de um curso. O planejamento é uma técnica de coordenação de uma atividade, no nosso caso, educacional. Toda técnica de coordenação deve ser flexível para suportar mudanças no percurso caso sejam necessárias. É preciso planejar e avaliar para (re)planejar.

O planejamento de um curso, quer seja presencial, quer seja a distância, que não pensa seriamente na avaliação como processo contínuo pode fadar-se ao insucesso desde o seu nascimento. O DI deve pensar no diagnóstico inicial de um curso (avalição diagnóstica), na maneira como a formação está sendo conduzida (avaliação formativa) e, finalmente, quais foram os resultados obtidos pelos alunos ao final do curso (avaliação somativa). Qualquer planejamento que não preveja a avaliação inicial, a intermediária e a final pode não ter sua eficácia consagrada.

Em face de todo o exposto, cabe salientar que a avaliação deve ser a mola propulsora do ensino e da aprendizagem. Ela é seguramente o principal mecanismo de todo o sistema educacional de um país. A avaliação não é instrumento, é ação transformadora.

Referências:

OLIVEIRA, Gerson Patre. Avaliação e validação de projetos. São Paulo: SENAC, 2014.­­­­­

Observação: Este texto foi apresentado, como requisito avaliativo, à disciplina Avaliação e Validação de Projetos Educacionais do curso de Especialização em Design Instrucional oferecido pelo Centro Universitário SENAC/SP.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O ÌPÀDÉ

Babá Thonny ty Oyá


A finalidade deste texto não é escrever um tratado sobre o ìpàdé, visto que o assunto é bastante amplo, não sendo possível exauri-lo em poucas linhas. Pretendemos, no entanto, de modo despretensioso, apresentar algumas informações básicas sobre essa tão importante cerimônia dos cultos de origem africana que está caindo no esquecimento ou, quando não, sendo modificada/simplificada em muitas casas de Candomblé.

Diferente do que é praticado na maioria das casas de culto aos orixás, o ìpàdé é uma cerimônia mais complexa que o ato de cantar para Èṣù e ao final das cantigas ofertar o  “mi-ami-ami”, espécie de farofa feita de farinha de mandioca com azeite de dendê ou com outra iguaria (cachaça, água, mel entre outros) — Comumente chamado de pàdé —, espargir uma porção de água de uma quartinha de barro e acender uma vela em um dos cantos da porta de entrada.

Assim sendo, queremos, inicialmente, diferenciarmos o ìpàdè do pàdé para que não existam dúvidas, ao final, sobre o que estamos chamando de ìpàdé. A palavra pàdé ganhou duas acepções na maioria das casas de culto no Brasil: tanto é usada para designar o ato de cantar para Èṣù, quanto para se referir ao “mi-ami-ami”. Ademais, a mesma expressão (pàdé), segundo o dicionário de língua yorùbá de José Beniste, é utilizada para denotar reunião de pessoas e não farofa feita de farinha com dendê ou com qualquer outra iguaria. Salienta-se que a palavra ìpàdé aparece, no dicionário pesquisado, traduzida também como reunião assim como a palavra pàdé.

Outro importante equívoco que merece ser dirimido neste texto é o fato de o ìpàdé não ter a função de despachar Èṣù. A belíssima cerimônia do ìpàdé serve, inicialmente, para louvar e agradar Èṣù que é o mensageiro entre o homem e os demais orixás e também para louvar outras entidades conforme veremos mais adiante.  Èṣù fala a língua dos homens e a língua dos orixás. É ele quem leva as súplicas e mazelas dos homens aos orixás e quem traz as respostas do òrún (céu, firmamento) às dúvidas humanas. O ìpàdé não deve ter a conotação de presente para que Èṣù não perturbe a cerimônia e sim de presente para que ele, como mensageiro, faça a ponte entre o homem e os orixás e não deixe que nada de mal aconteça enquanto é realizada a cerimônia principal, ou seja, a festa aos orixás.

O ìpàdé é uma cerimônia, eminentemente, feminina nas casas de Candomblé, é celebrado pela ìyamoró, apoiada pelas filhas mais velhas da casa, preferencialmente, pela ajimuda,  pela dagan e pela sidagan, ao som de cantigas cantadas pela iyá tèbèsé, sob o controle e supervisão do babáloìṣá e/ou ìyálorìṣá, mas isso não significa que outras mais velhas não possam participar do ato. Os homens participam tocando os instrumentos e respondendo as cantigas apenas. Somente a iyamoró tem o poder de entrar e sair do templo durante o ato do ìpàdé haja vista ter ela recebido a cabaça que afasta as grandes mães.

Para o cerimonial do ìpàdé é depositado sobre o centro da casa um alguidar (prato de barro) contendo “mi-ami-ami” feita de farinha de mandioca com azeite de dendê, uma quartinha com água límpida, uma vela acessa e pratos com as comidas de preferência dos ancestrais.

Como se sabe, o ìpàdé é dirigido acima de tudo a Èṣù, no entanto são celebrados outros entes importantes para os cultos de matriz africana, tais como os Eguns, os Egunguns e os babás Eguns (antepassados), os essá (mortos ilustres no candomblé), às grandes mães Ìyámí (Osoronga, Opaoká e Ajé Salunga). Por fim, são celebrados os orixás dos mais antigos considerando a linhagem de cada raiz.

Depois do ìpàdé, os ritos seguem normalmente conforme o planejamento de cada casa. Salienta-se que essa cerimônia serve para retirar o ajé (as energias negativas) para que os demais ritos sejam coroados de êxito, de harmonia, de tranquilidade e de paz.

Metodologia:

I. É uma cerimônia interna da casa, por isso é recomendável que apenas os de casa participem.
II. Arriar um alguidar com o mi-ami-ami, preferencialmente, feito de farinha com azeite de dendê, uma quartilha de barro contendo água fria e límpida, comidas preferidas dos ancestrais (se for o caso), vela acesa, tudo no centro da casa.
III. Devem participar dos atos principais apenas os cargos indicados no texto acima.
IV. Canta-se na sequência para Exu, ancestrais, Yamins, Oxum (primeira mãe de santo) e orixás da linhagem.
V. Ao cantar para Exu, ancestrais e Yamins, a ìyámorró acompanhada de suas auxiliares sai com o mi-ami-ami, a quartinha de água, as comidas dos ancestrais e a vela para fazer as oferendas conforme cada casa.
V. Ao retornar, são orquestrados os cânticos para os demais orixás reverenciando os santos da linhagem, do bisavô, do avô, do pai etc.

Vocabulário:

Ajé: energia negativa.
Ajé Salunga: uma das três Ìyámí.
Ajimuda: cargo feminino responsável pelos carregos da casa, auxilia no ìpàdé.
Babá Egun: espíritos de antigos babalorixás.
Babáloìṣá: sacerdote afrodescendente.
Dagan: cargo feminino responsável por fazer os preparativos do ìpàdé.
Egun: alma ou espírito de qualquer pessoa falecida.
Egungun: espírito ancestral de pessoa importante para os cultos afros.
Essá: pessoas já falecidas que devem ser reverenciadas no oxé.
Èṣù: Orixá africano responsável pelos caminhos; senhor dos caminhos, senhor do movimento.
Ìpàdé: cerimônia de louvação e entrega de oferendas a Èsù e aos ancestrais de uma casa de candomblé.
Ìyálorìṣá: sacerdotisa afrodescendente.
Íyámí: As grandes mães feiticeiras, aquelas que detém o segredo da criação.
Ìyámoró: Principal  responsável por dirigir o cerimonial do ìpàdé.
Ìyátèbèsé: porta-voz do orixá da casa, pessoa feminina que dirige os cânticos.
Mi-ami-ami: farofa de farinha com dendê, água, mel, azeite, cachaça.
Opaoká: uma das três Ìyámí; árvore sagrada para os yorubás
Òrún: céu.
Osoronga: uma das três Ìyámí.
Osidagan: auxiliar da Ìyádagan
Otundagan: auxiliar da Ìyadagan
Pàdé: reunião de pessoas de uma determinada sociedade. No Brasil é o nome mais conhecido para a farofa de farinha de mandioca dom iguarias líquidas oferecidas a Èxú, ver mi-ami-ami.
Yorùbá: iorubá, idioma nigero-congoles que é falado no sul do Saara, na África, e no Brasil.

Referências:
BENISTE, José. Dicionário yorùbá português. São Paulo: Bertrand Brasil, 2013.

ATENÇÃO! Este texto tem como proposta apresentar, de modo muito panorâmico e modesto, a cerimônia do ìpàdé que, como o passar dos tempos, vem se perdendo e/ou sendo simplificada nos terreiros de candomblé do Brasil. Esta proposta poderá ser ampliada com os comentários e postagens feitas pelos leitores. Assim sendo, peço que não economizem contribuições. Antecipadamente agradeço a todos os que lerem e contribuírem com o estudo sobre o ìpàdé.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

CASAMENTO DE EVANDRO E DANIEL - LIMEIRA – SÃO PAULO

Por Thonny Hawany
 

No dia 26 de abril, às 20 horas e 30 minutos, numa linda Chácara no Bairro Vila São Vivente, na Cidade e Comarca de Limeira, Estado de São Paulo, nasceu mais uma família homoafetiva por força do amor e da lei. Evandro Inácio e Daniel Misael dos Santos tornaram-se um só depois dos votos de eterno amor e fidelidade.
 
Os noivos casaram-se na presença da meritíssima senhora juíza de casamentos, Kátia Cristina Scavone Kühl, que além de proferir as palavras ditadas pela lei, também deixou aos noivos e aos seus familiares e convidados uma bela mensagem de amor, de igualdade, de liberdade e de respeito à dignidade humana, como estão consignados na Constituição Federal do Brasil.
 
Daniel Misael dos Santos, pai biológico de Kaio e Kauã e Evandro Inácio, pai adotivo de Higor, depois de um ano de União Estável, resolveram dar efetividade à linda família que formam. Os três meninos, agora, têm dois pais dedicados e amorosos.
 
Daniel é filho do senhor Luis Gonzaga dos Santos e de dona Luiza dos Santos, Evandro é filho de dona Maria Inácio e do senhor Valdeci Inácio. Os pais de Evandro estiveram presentes todo o tempo e se mostraram muito emocionados.
 
O casamento de Daniel e Evandro não foi o primeiro casamento homoafetivo de Limeira, visto que já aconteceram outros casamentos entre mulheres; mas segundo informações seguras, foi este o primeiro casamento entre dois homens. Limeira, uma bela e tranquila cidade do interior de São Paulo, pode se orgulhar da nova família forjada por força do amor e da lei.
 
Os amigos do casal vindos de diversas cidades do interior e da capital de São Paulo, bem como os que vieram dos Estados de Rondônia e do Amazonas puderam testemunhar uma união verdadeira. Como sempre digo: o amor nasce de Deus, mas se espalha por todos os lugares onde Deus se faz presente.
 
Eu não tenho dúvidas: Deus estava presente naquela cerimônia estendendo suas mãos sobre Evandro, sobre Daniel, sobre os meninos Kaio, Kauã e Higor e sobre todos os que lá estivam para prestigiar mais uma grande história de amor.
 
Não posso deixar de registrar aqui a minha solidariedade a todos aqueles que querem constituir uma família da mesma forma que Evandro e Daniel e tantos outros já fizeram por todo o Brasil. O casamento igualitário é uma realidade em diversos países do mundo. As famílias homoafetivas estão por todas as partes. É preciso que os Estados/Nações de todo o mundo aprendam a reconhecer o amor entre pessoas do mesmo sexo e a valorizar os Direitos Humanos de todos e de todas sem nenhuma distinção.