sexta-feira, 24 de junho de 2016

A CABAÇA: DA CUIA À REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO

Por Thonny Hawany

A cabaça, fruto do cabaceiro, é um dos objetos mais presentes nas cerimônias do Candomblé. Por mais que inventem novos materiais, novos utensílios, novos métodos, novas tecnologias, alguns objetos são de uso obrigatório e sua substituição pode causar danos irreparáveis ao culto e às tradições. A cabaça é um desses elementos.

Quando inteiro, o fruto seco é denominado de cabaça, mas ao ser cortado e de acordo com a forma como é cortado, recebe outros nomes em português e também em yorùbá. Se inteiro é cabaça, se cortado é cuia.

A cabaça, nas casas de Candomblé, é utilizada no dia a dia como objeto simples e também como objeto revestido de sacralidade em diversos ritos. Conforme os dicionários de língua yorùbá, a cabaça é chamada de àkerègbè e suas metades, depois de partidas e separadas, de ìgbá (cuia).

Cortada verticalmente, a cabaça se divide em cuias que são utilizadas como objeto onde se faz o pàdé, iguaria votiva preferida de Èṣù no rito do ìpàdé. As cuias servem-se também como utensílio para colher o àbó do pote, para servir o ẹjẹ́ nos ritos de ebó ẹjẹ́ ou para desenvolver outras ações semelhantes.

A cabaça também pode ser cortada rasa (ìgbájẹ), perto do fundo, ou perto das extremidades laterais, para servir alimentos como o fazemos com os pratos. Se cortada para cima do meio, na horizontal, cria-se um recipiente com tampa denominado ìgbàṣe, ritualisticamente utilizado para entregar os elementos e os objetos sagrados à pessoa iniciada por ocasião de sua obrigação de sete anos.

As cabaças pequenas servem como adornos de roupas, ferramentas e paramentas de boa parte dos òrìṣà(s) e podem representar importantes fundamentos descritos nos itá(ns), nos àdùrà(s), nos ọfò(s), nos orin(s) e nos oríkì(s). Ọmọlú, Òsányìn, Òyá e Èsù são exemplos de òrìṣà(s) que carregam pequenas cabaças em suas vestes e paramentas quando estão manifestados e paramentados.

As cabaças dependuradas nas vestes de Ọmọlú representam pequenos frascos contendo porções de cura (remédios). A cabaça com folhas de pèrègún pensa na roupa de Òsányìn representa o recipiente em que esse òrìṣà guardava suas folhas sagradas conforme está escrito no itá(n) que versa sobre o assunto. Já as cabaças que adornam o ọ́gọ́ de Èsù (ferramenta na forma de falo) tem a conotação dos testículos e representam a fertilidade.

É importante lembrar, sem entrar em muitos detalhes, a cabaça cortada ao meio no formato de uma cabeça, transforma-se em um dos elementos importantes para a iniciação de pessoas que não podem ser raspadas por terem nascidas àbìkú(s). Inteira, a cabaça poderá também representar a cabeça de alguém no rito do àṣàṣè que faleceu e que, por motivos alheios a vontade dos vivos, não pode passar pelo rito de retirada do òṣu.

A cabaça inteira vestida com uma malha confeccionada com contas serve-se como um instrumento musical chamado agbé e aquelas de pescoço mais comprido e inteiras servem-se como ṣẹ́rẹ́ (ṣèkerè), instrumento tocado para referenciar Ṣàngó.

A cabaça, cortada ao meio na horizontal, no formato ìgbàṣe, é utilizada como poderoso oráculo onde são guardados segredos que estão intimamente relacionados com o princípio e a existência de tudo o quanto foi criado por Òlòdùmarè. Entre todas as coisas guardas por Ìgbádù, nome que recebe essa cabaça, estão os Odú(s) que representam a existência e o processo de criação do Universo – assunto amplo que merece ser discutido em outra texto.

Em face de todo o exposto e segundo o nosso entendimento, a cabaça não é só um utensílio de muitas serventias, mas a grande metáfora cuja existência se funde integralmente com o nascimento, o desenvolvimento e a morte do todo. Alegoricamente ela representa parte do aparelho reprodutor feminino: o útero, onde nós, os seres da criação, somos forjados e preparados para a vida terrena. Em suma, a cabaça pode ser um simples utensílio doméstico, como também a representação da vida e do construto universal. Essa compreensão dependerá do entendimento e do nível de consciência a que cada um de nós atingimos ao longo de nossa vida. 

Atenção! Com este texto não pretendemos esgotar todo o tema. Ainda que quiséssemos, isso não seria possível haja vista a amplitude que tem.

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