sexta-feira, 17 de junho de 2016

REFLEXÃO SOBRE A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO E DO ÀṢẸ

Por Thonny Hawany

Não está muito longe o tempo em que as igrejas cristãs, quase que de modo geral, proibiam que seus fiéis assistissem a programas de televisão, ouvissem rádio, estudassem, lessem livros cujos autores pudessem, de alguma forma, desmentir ou descaracterizar seus discursos alienadores e de pouca profundidade teológica. Como sabemos, em lugar nenhum, está escrito que assistir a programas de televisão, ouvir rádio, estudar ou ler livros constituam algum tipo de pecado. Mesmo não havendo nenhum dogma que proíba, esse subterfúgio é usado ainda hoje, em menor escala, como forma de alienação de adeptos.

Nas religiões de matriz africana, está acontecendo um fenômeno semelhante. Há sacerdotes que, de modo geral, proíbem seus filhos a lerem livros, a consultarem à Rede Mundial de Computares, a assistirem vídeos e documentários que possa contribuir com a aquisição de conhecimento sobre a religião. Há ainda os que não proíbem, mas que, por meio de um discurso que em nada se sustenta, buscam descaracterizar, sem exceção, todo o material publicado em livros, em sites ou em blogs, quase sempre, afirmando que tais conhecimentos são ilegítimos e que os únicos válidos são aqueles obtidos oralmente no seio de suas famílias.

Quando foram publicados os primeiros livros contendo cânticos, rezas, ebós, vocabulário, conceitos gerais da religião dos orixás; a voz de condenação, nos terreiros, era quase que unânime. Não se era raro ouvir os mais velhos dizerem que a tradição estava ameaçada, que a cultura dos orixás estava sendo corrompida, que os segredos estavam sendo banalizados, entre outros comentários.

Para nortear o nosso entendimento sobre o assunto proposto para esta reflexão, a seguir, criaremos alguns problemas que servirão como balizadores do discurso que pretendemos sustentar em nossa tese. São elas: (1) A tradição afrodescendente foi mantida igual e da mesma forma em todos os terreiros do Brasil? (2) Todos os sacerdotes afrodescendentes estão aptos a ensinarem os seus filhos tudo sobre a cultura e sobre o àṣẹ? (3) Todos os livros escritos a respeito das religiões afrodescendentes mantêm intactos os dogmas, preceitos e fundamentos construídos ao longo de milênios? (4) Tudo o que está publicado na Rede Mundial de Computadores é confiável do ponto de vista das religiões de matriz africana? (5) O conhecimento adquirido por intermédio das mídias diversas carrega em si o àṣẹ como essência de maior poder das religiões de matriz africana?

 Sobre a primeira pergunta que indaga a respeito da manutenção das tradições nos terreiros de candomblé do Brasil, a experiência nos faz dizer que: nem mesmo na África a tradição é a mesma de um país para o outro, de uma cidade para a outra, de um estado para o outro, de uma aldeia para a outra, de um clã para o outro, de uma família para a outra. No Brasil, isso não é diferente, a linha geral da tradição foi sim mantida, e é isso que nos faz pertencer a um grande grupo sócio-político denominado de “Povo de Terreiro” ou “Povo de Àṣẹ”. No entanto, cada casa de àṣẹ, segundo suas necessidades históricas, geográficas, temporais, sociais e políticas adaptou e construiu sua forma de entender as tradições afrodescendentes.

A respeito da segunda questão, acreditamos que nem todos os sacerdotes estão preparados para a transmissão do conhecimento e do àṣẹ. A lacuna deixada pelos mais velhos, que morreram sem transmitir o que conheciam, tem sido considerada, por diversos autores, como a grande vilã da falta de conhecimento de parte da geração atual. A cultura africana e o conhecimento afro-religioso são complexos e profundos; por isso, não acredito que haja sacerdotes com a faculdade de transmitir tais conhecimentos de modo a exauri-los. A tradição oral, por si só, não é garantia de manutenção do conhecimento adquirido, nem mesmo de resgate daquele que foi perdido. A história é nossa maior testemunha. É notória a importância que tiveram e têm os pesquisadores de fora e de dentro da religião para o resgate de muitos conhecimentos ameaçados de esquecimento.

Sobre os livros cogitados na terceira questão, não acredito que haja neles todo o conhecimento a respeito de uma cultua tão rica; no entanto, é possível dizer que a partir da publicação, no Brasil, das obras acadêmicas de Pierre Fatumbi Verger, de Roger Bastide  e também daquelas escritas pelos chamados autores litúrgicos, os olhos do Povo de Terreiro abriram-se para novos rumos e para novas perspectivas.

Os livros, quase sempre, refletem o ponto de vista dos seus autores e, necessariamente, podem não refletir o ponto de vista dessa ou daquela família de àṣẹ. Nos livros não está tudo o que se pode saber sobre a cultura afrodescendente, mas há neles o ponto de partida para se chegar a uma compreensão que, de modo egoísta, sempre foi negada a quem quer e precisa aprender para dar continuidade ao legado dos òrìṣà.

Em se tratando da questão que indaga sobre a Rede Mundial de Computadores, como fonte de conhecimento, seria ignorância minha e de quem o fizer negar a importância da internet como fonte de pesquisa e de aquisição de conhecimento, seja ele de qual natureza for. No entanto, em face da diversidade de entendimentos e das várias interpretações que foram feitas a partir dos elementos culturais trazidos pelo africano para o continente americano, as diversas postagem disponíveis na internet podem não refletir um conhecimento real conforme a ótica de cada família de àṣẹ.

Isso significa dizer que: o que está disponível na internet pode ter validade para uns, mas não para outros. Além do mais, ainda é bom constar que a inventividade humana e sua necessidade criativa podem levar um dado autor a produzir e a publicar algo que apenas possui aparência de legítimo, mas que nada tem a ver com os fundamentos afrodescendentes guardados e transmitidos, de geração a geração, pelas principais famílias representantes da cultura africana no Brasil. Em síntese, não é inteligente proibir filhos e filhas de santo a pesquisarem conhecimentos na internet, mas recomendar cautela aos que se valem da internet como fonte de pesquisa para não se embriagarem de engodos como se fossem verdades, é obrigação de todos os sacerdotes.

A quinta e última questão é bastante subjetiva e, tanto por isso, não seria possível construir aqui uma resposta que não atendesse à subjetividade do próprio questionamento. Àṣẹ é poder, é energia, é essência do òrìsà, é legado de nossa ancestralidade, é virtude do homem que o merece.

As mídias diversas (livros, apostilas, sites, blogs) podem até conter farto conhecimento sobre cultura afrodescendente, sobre religião de matriz africana; podem até definir o que se deve entender por àṣẹ, contudo não serão capazes de transmitir o àṣẹ como verdadeira essência da ancestralidade. Àṣẹ não se empacota, não se embala, não se envaza, não se embrulha. O àṣẹ não é uma porção de pó, um líquido colorido ou incolor em vidro, um talismã, um objeto qualquer, algo que se vende ou se compra em loja de artigos religiosos.

O àṣẹ se sente e se é feito sentir. Trata-se, pois, de uma suprema célula de energia invisível que é transmitida de geração em geração, por meio do contato social e, especialmente, na prática dos atos religiosos. É nos atos de passagem que o àṣẹ de nossos ancestrais se converge e se mistura com a nossa própria essência de vida. Uma vez transmitido a alguém, viverá o àṣẹ para sempre em nossos corpos físico e espiritual, individual e coletivo.

Todas as palavras (escritas ou faladas) produzem conhecimento porque são vivas ideologicamente; mas somente aquelas proferidas nos ritos e atos de passagem do Candomblé podem transmitir conhecimento e àṣẹ ao mesmo tempo.

Assim sendo, concluídos que o conhecimento a respeito de cultura afrodescendente e de àṣe, na sua mais ampla acepção da palavra, não deve ser nem tanto por tradições orais, nem tanto pelas lições escritas e veiculadas pelas variadas mídias. A união entre o conhecimento científico e o religioso seria garantir de elucidação de toda a verdade sobre o criador e toda a sua criação. As tradições orais convergidas às publicações nas diversas mídias podem representar a busca pela perpetuação de uma fé que já vive há milênios.

Nós, sacerdotes afrodescendentes, a exemplo de alguns inseguros, não devemos temer os livros, a televisão, o rádio, os jornais, o celular, os satélites, o computador, a internet. Devemos sim fazer uso disso tudo como instrumento de operacionalização e otimização dos nossos cultos, das nossas tradições, da transmissão do àṣe que nos foi legado pelos nossos ancestrais.

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