sábado, 29 de maio de 2010

DIREITO PRÓPRIO DO ÍNDIO: ONDE HÁ HOMEM, HÁ DIREITO

O presente texto é produto de estudos feitos para apresentação de um trabalho sobre Direito Próprio do Índio na disciplina de Direito Indígena ministrada pelo exímio professor Fabrício Fernandes Andrade.


Por Thonny Hawany

Sabe-se, pois, historicamente, que quase a totalidade dos povos primitivos, dos quais se têm notícias, possuíam um sistema de normas jurídicas tão complexas e tão eficientes quanto as que hoje existem nas chamadas nações civilizadas. Os índios brasileiros não são a exceção, cada povo possui um conjunto de normas e de regras constituídas, secularmente, que ditam os direitos e os deveres de cada indivíduo e também as sanções a serem aplicadas no caso daqueles membros efetivos que contrariam, por ação ou omissão, os usos, os costumes e as tradições preexistentes na tribo. O direito, que aqui chamaremos de direito próprio do índio, constitui-se de um conjunto de regras que, como já vimos, acompanham os usos, os costumes e as tradições de cada um dos povos. É, portanto, o que se pode chamar de um direito consuetudinário Indígena em terras do Brasil. (Na foto, a advoga indígena Joênia Batista Carvalho Wapichana).
Preliminarmente, não se pode, ou se deve confundir direito próprio do índio com o chamado direito indígena, este é o direito pensado e codificado pelo Estado para regular suas relações com os povos indígenas, a exemplo da Lei nº 6.001/73, mais conhecida como Estatuo do Índio e dos artigos 26, XI, 231 e 232 da Constituição Federal; enquanto que aquele é um direito cunhado, pois, à luz das relações sociais tribais. Segundo o nobre professor Fabrício Andrade (on-line), depois da Constituição de 1988, “a perspectiva da questão indígena, nesse contexto, ganhou novos ares por conta desse novo panorama constitucional. Hoje é tudo mais leve, ainda que se admita que muito falta a se fazer. Os índios, antes não-declarados ou excluídos, emergiram numa postura agora de resgate da sua identidade. Há muito ainda o que avançar, reconhece-se”.
A ideia de os povos indígenas possuírem um direito próprio assombra e tira o sono de muitos juristas brasileiros, para os mais tradicionalistas é impossível que dois direitos convivam no mesmo território, ou seja, que o chamado direito próprio do índio seja aplicado paralelamente ao Direito Estatal. Segundo Marés apud Araújo et alli (on-line), “as concepções dogmáticas do Direito negam a possibilidade de convivência, num mesmo território, de sistemas jurídicos diversos, acreditando que o Direito Estatal seja único e onipotente”.
Ainda que o direito próprio do índio tenha, em muitos casos, efeitos benéficos na dissolução de conflitos entre os membros da coletividade indígena, o seu reconhecimento formal tende a ser muito polêmico e, quase sempre, contestado. A admissão desse direito, historicamente, no Brasil, tem se dado de modo tímido, em casos excepcionais e com expressas ressalvas.
Segundo Martins (2005, p. 126), em lugar de admitir o direito próprio do índio como eficaz conjunto de normas para prevenção e composição dos conflitos tribais, a sociedade etnocêntrica, ou seja, “branca” edificou uma “legislação indigenista [...] construída sobre bases e parâmetros do não-índio. O direito indigenista é o direito pensado para o índio utilizando paradigmas do não-índio, sem ouvir os sujeitos do direito, sem pensar nem respeitar as diferenças. E isso significa dar aos índios regras da cultura “branca”. Assim sendo, reconhecer sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições [...]” (Art. 231, caput, CF), é apenas uma parte de tudo o quanto se deveria reconhecer aos povos indígenas, a exemplo da existência de um direito próprio e complexo que vai além de usos, costumes e tradições, efetivando-se numa prática que, vezes e vezes, do ponto de vista social, faz-se tão (ou mais) eficaz que o Direito Estatal na dissolução dos conflitos tribais.
A interpretação que não admite a convivência de dois direitos num só território é denominada de etnocentrista por Araújo et alli (on-line), ou seja, tudo o que emana da etnia de cultura privilegiada e dominante é tido como o padrão a ser seguido e copiado pelos demais. Dessa sociedade privilegiada emana tudo o quanto se pode e se deve ser admitido como verdadeiro e absoluto, relegando, assim, a um segundo plano as demais culturas coexistentes.
Se precisar se esforçar muito, é possível ver que o direito próprio do índio foi acolhido indiretamente pela Constituição Federal que não o chamou de direito, mas de usos, costumes e tradições. Assim sendo, pode-se dizer que, no art. 231 da CF, o Estado recepcionou o direito próprio do índio de uma forma que, a depender de seus interesses sócio-políticos, poderá ele, o Estado reconhecer tal direito quando bem lhe convier e negá-lo quando sua manifestação for excessiva ou atentar contra os princípios maiores do arcabouço jurídico estatal.
Nesse sentido, poderíamos dizer que a expressão “direito próprio do índio” foi suprimida no art. 231, por motivos óbvios, a saber: deve haver, de modo explícito, apenas um sistema jurídico para cada nação, por mais que tal nação seja formada por povos de diferentes etnias e que cada um desses povos possua seu conjunto de norma, escritas ou consuetudinárias. Martins (2005, p, 127), afirma que “aquilo que o homem não consegue manter sob seu poder, sob seu jugo, deve ser nulificado. Melhor dizendo, aquele espelho que não reflete a sua própria imagem não merece consideração; para esse homem, inexiste qualquer imagem que seja divorciada da sua”. Daí a tendência de nulificar, invalidar ou camuflar o que é próprio do outro para que, deste modo, sobressaia apenas o que melhor lhe aprouver.
Na Coleção Educação para Todos, intitulada de “Povos Indígenas e a Lei dos ‘Brancos’: o direito à diferença”, o direito próprio do índio é tido como mera fonte secundária do Direito Estatal e isso não passa de um desejo e de uma vontade do legislador etnocentrista. Segundo Marés apud Araújo et alli (on-line), “A invenção da lei, apesar das legitimidades supostas e não raras vezes impostas, formou-se como sistema que não admite concorrência e, por isso mesmo privilegia uma única fonte e além de descartar como não-direito tudo aquilo que não está claramente inserido no sistema”. Para Colaço apud Martins (2005, p. 127), “as populações indígenas possuíam as suas regras de convívio social, o direito consuetudinário, que lhes foi negado por falta de compreensão e respeito, e também pelos interesses da dominação colonial”. Com isso, dizer que o direito há muito tempo se manifestava nas terras brasileiras antes mesmo da chegada do europeu no século XVI.
Para ilustra o que chamamos de direito próprio do indo, recorreremos ao julgamento da Ação Criminal de nº 92.0001334-1, pela justiça Federal de Roraima, que deixou de condenar o índio Basílio Alves Salomão pelo homicídio do também índio Valdenísio da Silva. O Crime foi cometido em 1986 e julgado em 2000, quatorze anos depois. O índio homicida, na oportunidade em que cometera o crime, foi julgado por um Conselho, composto por índios de grande influência na tribo e foi condenado a cavar a sepultura para enterrar a vítima e também à pena de banimento, que segundo antropólogos, não é somente a maior pena aplicada pelo Conselho, mas a maior pena que um índio pode receber. Para quem recebe tal pena, privando-lhe do convívio com os seus entes queridos (família e amigos tribais) é o mesmo que perder a liberdade ao ser enclausurado em celas (no caso da pena em decorrência da aplicação do Direito Estatal).
Por entender que o índio Basílio afastado de seus entes queridos a, aproximadamente, 14 anos, já havia recebido a devida punição e cumprida a pena aplicada pelo seu próprio povo; no decorrer dos debates, o Ministério Público Federal pediu a absolvição do réu que foi absolvido por sete votos a zero. Com essa decisão, o Tribunal do Júri acabou por reconhecer a eficácia do direito próprio do índio evitando que ocorresse o bis in idem penal.
Na decisão do Tribunal do Júri que julgou o índio Basílio Alves Salomão há dois pontos que merecem destaque: o primeiro é o fato do reconhecimento do direito próprio do índio e o segundo é a incongruência em aceitar a pena de banimento como válida, expressamente, vedada pela Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso XLVII, alínea “d”.
Ainda analisando o caso de Roraima, percebemos que o direito próprio do índio, excepcional e acertadamente, julgou e penalizou o índio Basílio Alves Salomão pelo homicídio que cometera contra o índio-vítima Valdenisio da silva; tanto por isso que tal decisão foi acatada pelo Tribunal do Juri. No entanto, esse mesmo direito que se fez eficaz no caso em tela, secundo a Justiça Federal de Roraima, pode não o ser se condenar indivíduos a penas que vão além do previsto e/ou do permitido pelo arcabouço jurídico brasileiro. E essa dicotomia é o que leva os pensadores do direito a se digladiarem, uns em favor do reconhecimento expresso de um direito próprio do índio e outros pelo não reconhecimento de tal direito e se justificam pela incongruência de conviver num mesmo territórios dois sistemas jurídicos distintos.
Na perspectiva de Andrade (on-line), para “a FUNAI e a FUNASA, são mais de 300 mil índios no Brasil, embora dados do IBGE indiquem que sejam mais de 700 mil”, divididos em inúmeros povos e comunidades. O fato de haver diversas etnias, leva-nos a antecipar a existência de diferentes usos, costumes e tradições. Em se tratando do índio e a sua evolução no espaço e no tempo, há os que avançaram histórica e culturalmente, mas também há outros que, por serem menos ou nada integrados, ainda cometem, em nome de uma ética e de uma moral próprias, atos bárbaros, a exemplo das penas de morte impostas a crianças com deficiência mental, física e/ou ligadas a fenômenos que a aldeia, por não ter explicações, acaba atribuindo a elas diretamente.
Para Martins (2005, 127), “falar de um direito dos povos indígenas, é, pensar em um direito sem leis escritas, no qual os ensinamentos são transmitidos de forma oral e a observação constitui fonte importante de aprendizado”. Deste modo, não há como negar a existência de um direito que seja próprio da cultura e das tradições indígenas. O problema deflagrado pela existência de direito próprio do índio leva-nos à seguinte questão, cuja resposta, deixo para os grandes doutrinadores. Como admitir e quando admitir o direito próprio do índio sem que o fato de aceitá-lo macule a soberania das leis nacionais e sem que a sua negação signifique desrespeito à diversidade?
Em face de todo o exposto, negar a existência de um direito próprio do índio é uma questão de política nacional, dizer que ele não existe é um contrasenso acadêmico que nega, em tese, as bases da sociologia e da antropologia jurídicas, bem como da própria Ciência e Teoria do Direito. Onde há um ou dois indivíduos convivendo, há direito. Se esse direito é próprio do indivíduo ou do Estado, essa já uma questão a ser dirimida pelos doutrinadores mais experientes.

Referências:


ANDRADE, Fabrício Fernandes Andrade. O direito indígena: o índio, a índia. Disponível em: http://professorfabricioandrade.blogspot.com/2010/03/o-direito-indigena-o-indio-india.html. Acesso em: 27/05/2009, às 14h41min.
ARAÚJO, Ana Maria et alli (org). Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET14_Vias03WEB.pdf. Acesso em: 23/05/2010, às 17h36min.
MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow. Direito ao pão novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. São Paulo: Pillares, 2005.


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4 comentários:

  1. Belo paradoxo jurídico amigo; se o direito deve nascer das relações sociais e ser desta, valor e norma, como negar este preceito no caso do direito construído pelo índio durante séculos de existência? o grande dilema, aqui instaurado, é termos dois corpos existindo ao mesmo tempo no espaço; tal qual na ideologia americana, um tem que perecer; caracteristica básica da dominação e teoria da outremização; belíssima teoria contestatória deste caráter dominador; abraços e parabéns pelo texto;

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  2. Thonny, passei para agradecer pelas referências tão especiais feitas a mim no seu rico texto. Aliás, é importante destacar que, em pesquisa no google, não há outros trabalhos publicados na net sobre o tema. O seu texto vai explodir de acessos. Isso já aconteceu com outra turma na qual ministro Direito Indígena. Detalhe: só que não citaram o autor... hehehehehe

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  3. kaike Maldaner Antonio17 de junho de 2010 às 08:47

    Kaíke Maldanr Antonio, 1ºperíodo de ciencias contábeis, turma A
    TONI, segundo meu entendimento qualquer desvio das normas gramaticais pode ser considerado vícios de linguagem e que linguagem é todo e qualquer meio de comunicação humana, sujeita a transformações, individualizações e o meio em que se vive.

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  4. Thiago Felisbino Teixeira19 de junho de 2010 às 09:35

    Thiago Felisbino Teixeira, 1º período de Ciências Contábeis, turma A.
    Professor, não irei falar em vícios de linguagem nem sobre português, mas eu gostaria de dar minha opinião sobre a lei que defende os índios, eu acho que é bom pra eles e concordo até certo ponto, pois eles deveriam pagar sim pelos crimes que eles cometem na civilização, isso porque eles atualmente são mais espertos, e não mais aqueles ingenuos de 20, 30 anos atraz, eles sabem muito vem quando eles estão fazendo coisa errada tanto que eles se escondem por traz das suas tribus onde a lei não os atingem, isso sem falar das negociações que eles fazem para vender os diamantes que eles vendem juntamente com os garimpeiros e quando acontece algum atrito entres os índios e os Garimpeiros acontece muitas mortes e eles falam que foi pra defender sua área, então como falar que eles são bobos, ingenuos ou tolos se tudo q eles falam são com o nosso diguinissimo livro da constituição.

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